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O SONHO (ERRADO) ACABOU
Com a impunidade de Cunha, você podia até defender
Lula e Dilma numa boa, por mais que eles roubassem o Brasil
POR GUILHERME FIUZA
EM “O GLOBO”
22/10/2016
A prisão do companheiro Eduardo Cunha deixou aturdidos os heróis da
resistência democrática. Como vão explicar isso em casa? Cunha era o grande
vilão do golpe, a mente perversa que arquitetou a destituição da mulher honesta
para entregar o poder aos brancos, velhos, recatados e do lar. A impunidade do
Darth Vader do PMDB era o lastro da lenda, a prova de que estava tudo armado
para arrancar do governo os quadrilheiros do bem.
Mas eis que Sérgio Moro, esse fascista que só persegue os bonzinhos,
prende Cunha. E agora? É grave a crise. Eduardo Cunha era a reserva moral do
PT. E do PSOL, da Rede e seus genéricos. Com a impunidade dele, você podia até
defender Lula e Dilma numa boa, por mais que eles roubassem o Brasil na sua
cara: bastava dizer que era contra o Cunha — o fiador do golpe, o homem do
sistema. Mas que sistema é esse que põe seu articulador no xadrez?
Ficou confuso. Melhor tomar uma água de coco, que o sol está forte.
Os juros começaram a cair depois de quatro anos. A inflação de outubro é a
menor em sete anos, e ano que vem o desemprego começa a baixar. Isso não é
mágica, é governo.
Temer faz parte da mobília antiga do PMDB, e não tem nenhuma
bandeirinha simpática para acenar. Se aparecer em alguma negociata, adeus. Mas,
ao assumir o Planalto, resolveu escalar os melhores para tomar conta do
dinheiro. Banco Central, Tesouro, Fazenda, BNDES, Petrobras — todos sendo
desinfetados pelos melhores cérebros, mundialmente reconhecidos.
Por que Michel Temer fez isso, e não simplesmente substituiu os
parasitas esganados do PT pelos velhacos do PMDB? Não interessa, perguntem a
ele. A vida no Brasil vai melhorar, e isso é muito grave. O que será daquelas
almas puras que gritam “fora Temer” e se tornam instantaneamente grandiosas?
“O bom entendedor fez suas contas: o discurso que cultiva
a mística de esquerda, à
prova de vida real, é exatamente
o que destruiu o país nos
últimos 13 anos”
O que será dos corações valentes que ficam bem na foto denunciando a
entrega do país ao bando do Cunha? Talvez só uma Bolsa Psicanálise para fazer
frente a tanto sofrimento. Na época do Plano Real foi igualzinho.
Na privatização da telefonia, que libertou a população dos
progressistas retrógrados de sempre, esses mesmos que gritam contra o golpe (ou
seus ancestrais) estavam lá nas barricadas — apedrejando quem chegava para os
leilões. Eram os heróis da resistência democrática contra a ganância
capitalista.
Aí a privatização se consumou, a vida de todo mundo melhorou, e os
heróis foram combinar a próxima narrativa — pelo celular. A eleição no Rio de
Janeiro, terra de Eduardo Cunha, apresenta um fenô meno surpreendente. No
primeiro turno, a cidade confirmou a sua vocação de oposição a si mesma. No
segundo turno, Marcelo Crivella disparou. Como pode?
Gente esclarecida, eleitores de candidatos respeitáveis como
Fernando Gabeira e que jamais votariam num bispo da Igreja Universal, cogitando
votar em Crivella? Talvez a resposta seja simples: Marcelo Freixo é o candidato
contra o golpe. O bom entendedor fez suas contas: o discurso que cultiva a
mística de esquerda, à prova de vida real, é exatamente o que destruiu o país
nos últimos 13 anos.
Freixo surgiu muito bem na vida pública. Fez um trabalho corajoso de
denúncia das milícias, num tempo em que muitos as viam como justiceiras contra
os traficantes. Se tornou personagem real de “Tropa de elite”, clássico extraído do trabalho excepcional de Luiz
Eduardo Soares — acadêmico de esquerda que jamais sujeitou sua honestidade
intelectual às místicas lucrativas. Já Freixo preferiu se tornar o personagem
de si mesmo. Seria ótimo, se fosse de verdade. Falar a verdade dá trabalho.
GUILHERME FIUZA É JORNALISTA E ESCRITOR |
O próprio Gabeira correu o risco do suicídio político algumas vezes,
para não trair suas convicções. Primeiro a fazer a crítica da luta armada ainda
em plena ditadura, apoiou a privatização da telefonia pelo governo FH — e na
época era difícil ao eleitorado de esquerda ver aquilo como o melhor para a
coletividade, e não uma traição neoliberal.
Depois desembarcou da base de Lula no auge, ao enxergar a putrefação
do governo pré-mensalão: “Sonhei o sonho errado”. As viúvas do governo que caiu
de podre 13 anos depois disso ainda tentam ver em Dilma (se lembram dela?) uma
vítima inocente da direita: preferem embelezar o pesadelo a parar de sonhar.
No Rio, o sonho errado ainda rende um bom mercado eleitoral. Na
ânsia de cultivar essa mística revolucionária, Freixo estimulou protestos
violentos (nega, mas estimulou) — logo ele, que denunciou as milícias
sanguinárias. Apoiou sindicalistas que bloquearam o trânsito e engessaram a
cidade.
Para vender o seu peixe humanista, ele prende e arrebenta — como
diria o general Figueiredo. Infelizmente, ainda há quem escolha candidato pelo
crachá de progressista ou conservador (no sentido de moderno ou retrógrado).
Então vamos lá, sem crachá: quem põe em risco seus votos para
defender o bem comum, como fez Gabeira, é progressista; quem põe em risco o bem
comum para defender seus votos, como faz Freixo, é conservador. E não adianta
botar o Cunha no meio, porque agora ele está ocupado.
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