quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

QUASE HISTÓRIAS: O CONTADOR DE CARNEIROS

Resultado de imagem para ilustração para contador de carneiros



Era uma vez um homem que, desde menino, acostumara-se a ver a vida pela janela. Esperava sempre as condições ideais para fazer aquilo que sonhava fazer – a maneira mais objetiva de nunca fazer nada.

Como o tempo não para, o menino também ficou velho, como ficam velhos todos, ou quase todos, os meninos. Uns, coitados, morrem cedo. Alguns, de rajada perdida. Outros, maioria talvez, pagam o preço da pior idade.

Ainda lhe restam forças para fechar a janela, tomar o elevador e, finalmente, caminhar. Mas de que lhe vale este fiapo de vigor, se ele não aprendeu a atravessar a rua?

Melhor cerrar a cortina. E contar carneiros. Como sempre fez.

(OS – 2013/ Atualizado em fevereiro de 2019)


terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

QUASE HISTÓRIAS: TIM-TIM

Resultado de imagem para imagens para brinde


Muita gente, ao contrário do que se pensa, não vai às festas para se divertir, embora não poupe esforços para ostentar aquela alegria fingida – de palhaço com o salário atrasado. Vai para reunir “subsídios”, para falar mal dos outros (das outras, em especial) no dia seguinte. A verdadeira festa acontece “amanhã”, sabemos.

Claro que as farpas são acompanhadas, quase sempre, de falsa comiseração:

- A fulana está imensa. Que roupa mais ridícula era aquela? Coitada. O marido quando não ganha pouco, está desempregado.

Boas festas. Não me convidem para elas, por favor. (OS)

HORA DA VITROLA: NOEL ROSA

Resultado de imagem para caricaturas Noel Rosa
Noel Rosa, nos traços de Borges


ÚLTIMO DESEJO
De Noel Rosa
Na interpretação de Martinho da Vila e Maira Freitas

Nosso amor que eu não esqueço
E que teve o seu começo
Numa festa de São João

Morre hoje sem foguete
Sem retrato e sem bilhete
Sem luar, sem violão

Perto de você me calo
Tudo penso e nada falo
Tenho medo de chorar

Nunca mais quero o seus beijos
Mas meu último desejo
Você não pode negar

Se alguma pessoa amiga
Pedir que você lhe diga
Se você me quer ou não

Diga que você me adora
Que você lamenta e chora
A nossa separação

E as pessoas que eu detesto
Diga sempre que eu não presto
Que meu lar é o botequim

Que eu arruinei sua vida
Que eu não mereço a comida
Que você pagou pra mim






FEITIO DE ORAÇÃO
De Noel Rosa e Vadico
Na interpretação de Marisa Monte

Quem acha
Vive se perdendo

Por isso agora vou me defendendo
Da dor tão cruel dessa saudade
Que por infelicidade
Meu pobre peito invade

Por isso agora
Lá na Penha vou mandar
Minha morena pra cantar
Com satisfação

E com harmonia
Esta triste melodia
Que é meu samba
Em feitio de oração

Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia

Por isso agora
Lá na Penha vou mandar
Minha morena pra cantar
Com maior satisfação

E com harmonia
Esta triste melodia
Que é meu samba
Em feitio de oração

O samba na realidade
Não vem do morro nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce no coração




Noel Rosa (1910-1937) foi compositor, cantor e violonista. Um dos mais importantes artistas da historia da música popular brasileira. Em pouco tempo de vida compôs mais de 300 músicas, entre sambas, marchinhas e canções. Entre suas músicas destacam-se, "Com que roupa", seu primeiro sucesso, "Conversa de botequim", "Feitiço da Vila" e "Fita amarela". Ficou conhecido como "O Poeta da Vila" (nasceu em Vila Isabel, no Rio de Janeiro). Fonte: www.e-biografias.net

QUASE HISTÓRIAS: O POVO NÃO QUIS SABER DAS BANANAS RECHEADAS DO PAI

Resultado de imagem para imagens para pastéia de banana
Foto: Arquivo Google
Naquela época, não havia Código de Defesa do Consumidor. Se houvesse, o pai, com certeza, teria problemas. Justo ele, tão correto, desde sempre pregador do bem. O pai jamais pensou em prejudicar quem quer que seja. Enganar o próximo? Nem pensar. Chegava a ser radical. Quando eu garoto, ele me dizia: “Não faça ‘mal’ a nenhuma moça”. E eu torcendo para que uma e outra, para que todas as moças, enfim, me fizessem o “mal” necessário. Escapei da virgindade cedo. Certos conselhos não podem – nem devem – ser seguidos.

Perdão. A ideia era falar de negócios e de propaganda enganosa que, a bem da verdade, não era exatamente propaganda enganosa. Era um equívoco semântico. Enveredei num papo de drive-in, que era para onde íamos, os apaixonados, naqueles tempos de fusca. Claro, me refiro aos prontos, como eu. Motel era coisa para gente bem de vida.

Voltemos ao que importa. O pai nasceu em Florianópolis, Santa Catarina. Filho único, ele chegou por aqui, em São Paulo, há muitas décadas, com a mãe (viúva), duas maletas, uns trocados no bolso, uma máquina de costura de mão e todos os sonhos do mundo. Estudou, trabalhou, deu aulas particulares. Um mouro, o pai. Casou-se. Menos de um ano depois, eu dei o ar da graça.

Por mais que o pai trabalhasse, não tinha jeito: o dinheiro do mês mal dava para a quinzena. Ele matutou, matutou, resolveu empreender. Precisava, dramaticamente, dar vida melhor para a mãe, assegurar o futuro dos filhos. Certo dia, ante a penúria que toda geladeira vazia denuncia, resolveu abrir o próprio negócio: comprou um triciclo daqueles que se usava para a entrega de pães, contratou um conhecido desocupado, traçou um plano de vendas e sonhou alto: o cara sou eu, deve ter imaginado. Então, anunciou em alto e bom som, cheio de confiança: vamos fazer “bananas recheadas”. Fez mais: delegou às mães – à dele e à minha – a tarefa de fazer as tais das “bananas recheadas”, que nada mais eram que pastéis de bananas, salpicados de açúcar e canela. Deliciosos. Até hoje sinto o cheiro deles (ou delas?). E babo. Cachos de bananas verdes foram dependurados por toda a casa, à espera do amadurecimento, do ponto certo. Pequeninho, eu me lambuzava com as bananas.

Como o dinheiro era curto, o negócio, infelizmente, naufragou em menos de uma semana. Não havia capital de giro. No primeiro dia, após horas de rua, o conhecido desocupado, recém-alçado à condição de vendedor, retornou à sede da empresa: vendera apenas uma das quase duzentas “bananas recheadas” com as quais fora para as portas de fábrica na hora do almoço dos operários. Segundo mãe e avó, comemos “bananas recheadas” até passar mal. Sem se alterar, o pai quis saber do funcionário o que justificaria tal insucesso (o pai jamais usaria o termo fracasso) de vendas do primeiro dia. Varou a madrugada refazendo a estratégia. No dia seguinte, pediu às mães que repetissem a produção da véspera. Dizem que não foi fácil fazê-lo aceitar a ideia de que cem bananas estavam de bom tamanho. E olhe lá! Pela mãe – a minha –, o “empreendimento” teria morrido ali mesmo, evitando, assim, trabalho inútil e novos prejuízos.

O pai sempre pensou grande. Mais: nunca desistiu facilmente de alguma ideia. De tempos em tempos – e durante anos –, voltava ao assunto, ameaçava retomar a iniciativa, para a apreensão de todos nós. Não se conformava com o fato de as “bananas recheadas” não terem encantado a freguesia. “Se fosse hoje, com a internet e tudo mais...” Eu desconversava sinceramente, ele também desconversava, mas só aparentemente. A ideia de retomar a aventura lhe formigava os miolos. O fato é que ele jamais conseguiu me explicar por que um simples, embora delicioso, pastel de banana era chamado de “banana recheada”. A banana não levava recheio algum, ela era o recheio. Que diabos! “Questões culturais, tradição de minha terra”, limitava-se a dizer, sem convencer ninguém. Vai ver que foi por isso que o negócio não deu certo. Sei não. Como, porém, explicar o fracasso da granja montada no quintal de casa? Mas essa prosa fica para outro dia. 


(Orlando Silveira - atualizado em fevereiro de 2019)



CAUSOS: NO DIA EM QUE OTTO LARA RESENDE "VIROU" ZÉ APARECIDO




Resultado de imagem para ILUSTRAÇÕES BÊBADO FAZENDO DISCURSOS EM BAR
TIM-TIM (FOTO: ARQUIVO GOOGLE)




O mineiro Otto Lara Resende (1922 – 1992) viveu mais tempo no Rio de Janeiro que em seu estado natal. Se nunca abandonou a “mineirice” trazida de São João Del Rei, incorporou, definitivamente, o senso de humor dos cariocas. Advogado, jornalista, escritor e frasista de primeira, Otto formou com Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, seus amigos de juventude, todos igualmente mineiros e talentosos, o que eles próprios definiram como os quatro “Cavaleiros do Apocalipse”. Ou: “adolescentes definitivos”. 

Antes de tudo, Otto foi um exímio contador de casos. Há quem o considere o “ultimo causeur” brasileiro. Ficcionista, ele próprio transformou-se num personagem. Diz-se que certa noite, em plena ditadura militar, ele entornou uns uísques a mais no famoso Antonio’s, reduto da boemia intelectual do Leblon. Lá pelas tantas, subiu numa cadeira e fez um duro discurso contra o regime vigente. Mais um gole, Otto voltou ao palanque improvisado, agora para comunicar à assistência, em alto e bom som, quem era: “Anotem o meu nome: José Aparecido de Oliveira”.

Em tempo: José Aparecido de Oliveira, ex-secretário do ex-presidente Jânio Quadros, mineiro como ele, era amigo de Otto desde os tempos de juventude, nas Gerais. Se a história é verdadeira ou falsa, ninguém sabe. Nem o jornalista Benício Medeiros, autor de um excelente perfil sobre o “mais carioca dos mineiros”.
Resultado de imagem para FOTOS OTTO LARA, PAULO MENDES CAMPOS, FERNANDO SABINO, HÉLIO PELEGRINO
DA ESQUERDA PARA A DIREITA: PAULINHO,
SABINO, OTTO E HÉLIO (AGACHADO) 


Nos tempos de juventude, numa brincadeira, Fernando Sabino
 fez a seguinte quadrinha, para adornar a lápide de Otto:

"Aqui jaz Otto Lara Resende

mineiro ilustre, mancebo guapo.

Deixou saudades, isso se entende:

Passou cem anos batendo papo."

(Atualizado em fevereiro de 2019)




sábado, 16 de fevereiro de 2019

QUASE HISTÓRIAS: “O SENHOR TEM CERTEZA DE QUE NÃO É CORNO?"

Resultado de imagem para ILUSTRAÇÃO PALMATÓRIA
Ilustração: Arquivo Google

Num passado não muito distante, aos secretários de redação dos jornais não bastava dominar os fundamentos da profissão. Era preciso ter vocação para carrasco. É lícito imaginar que, se eles pudessem, obrigariam repórteres e redatores novatos a colocar os joelhos sobre grãos de milho, por horas. Ou fariam, com satisfação, uso da palmatória. Eram (quase) todos eles adeptos da “pedagogia da porrada”. Ante a impossibilidade do castigo físico, partiam para a humilhação verbal - e pública. Mandavam repórteres e redatores reescrever textos que rasgavam sem ao menos ter lido. E a justificativa era sempre a mesma: “Está um lixo”.

Nos anos 60, Ricardo Noblat era um jornalista em início de carreira, época em que conviveu com o então secretário de redação do Jornal do Commercio, no Recife. Segundo ele, Eugênio Coimbra Júnior “era um homem mau, muito mau”. Toda vez que Coimbra Júnior convocava algum repórter ou redator para uma "conversa", a redação tremia. Humilhação à vista, grosseria na certa. Ninguém ria da desgraça alheia. Até porque muitos já haviam experimentado daquele fel. A historinha que segue foi extraída do livro “A Arte de Fazer um Jornal Diário”, de Noblat, editora Contexto.

Certo dia, Coimbra Júnior "convocou" um repórter inexperiente:

- O senhor é casado? – quis saber o secretário de redação.

- Sou – respondeu o repórter, fazendo esforço medonho para se equilibrar sobre as pernas.

- O senhor tem certeza de que sua mulher o ama?

- Claro. Certeza absoluta. Nós nos damos muito bem.

- Tem certeza de que não é corno? – insistiu Coimbra Júnior, com a voz nas alturas, para que todos pudessem ouvi-lo.

- Minha mulher é honesta. Por que isso, agora, seu Eugênio?

- É que o senhor começou o texto assim: “Pelo simples fato de ter encontrado sua mulher nos braços do amante, o comerciário a matou com três tiros...” Só um corno escreve uma coisa dessas. Pegar a mulher nos braços de outro lhe parece pouco?

O pobre repórter tentou engatar uma justificativa:

- É que eu achei...

- O senhor não está aqui para achar nada, mas para narrar os fatos. Quando quiser sua opinião, eu lhe peço.

Coimbra Júnior, à sua maneira, passou a lição: não se mistura fato com opinião. (OS - Atualizado em fevereiro de 2019)



HORA DA VITROLA: ZÉLIA DUNCAN, HAMILTON DE HOLANDA E NILZE CARVALHO (NAQUELA MESA)



NAQUELA MESA

De Sérgio Bittencourt (*)
Com Zélia Duncan, Hamilton de Holanda e Nilze Carvalho
  



Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre, o que é viver melhor.
Naquela mesa ele contava histórias,
Que hoje na memória eu guardo e sei de cor.

Naquela mesa ele juntava gente
E contava contente o que fez de manhã.
E nos seus olhos era tanto brilho,
Que mais que seu filho, eu fiquei seu fã.

Eu não sabia que doía tanto
Uma mesa no canto, uma casa e um jardim.
Se eu soubesse o quanto doi a vida,
Essa dor tão doída não doía assim.

Agora resta uma mesa na sala
E hoje ninguem mais fala no seu bandolim.
Naquela mesa tá faltando ele

E a saudade dele tá doendo em mim.



(*) Sérgio Bittencourt (1941/1979) foi jornalista e compositor, filho de Jacob do Bandolim - o  maior bandolinista brasileiro. Ouça, a seguir, o chorinho "Assanhado", do próprio Jacob, composto em 1961.



quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

DEI NISSO

Resultado de imagem para imagens pais e filhos



Não fui bom pai.

A caçula já me escreveu isso com todas as letras: “Pai, você não foi de todo ruim”.

Só pensava em trabalhar, contas a pagar, sabem como é. 

Inferno, vida de pai e mãe. Gostoso é ser avô de Dudu, primeiro e único, por enquanto. Gabriel vem aí, final de março. Mais um amor para amar. Quando Dudu me abraça, piro. Filhos nem sempre obedeçam aos pais. Peço a eles: façam filhos, preciso de netos.Eles vão me redimir, dar sentido à velhice. Melhor idade é a puta que o pariu.

Fui o possível. Ser possível é pouco, quase nada. Foi o que deu para ser: quase nada.

Meus filhos, por benção de Deus, deram certo.

Gosto da minha mesa de computador quase caindo. Fora dela não escrevo. Gosto de meu teclado antigo, que maltrato feito uma velha Olivetti. Sou velho. Minhas mãos descascaram de tanto limpar livros, muitos herança do maior homem que eu conheci: meu pai.

Aos poucos, minha casa toma corpo, toma rumo. Já não posso dizer o mesmo do novo inquilino, eu. Falta uma planta aqui, um pé de rosa acolá. Mas tenho tudo de que preciso. Continuo apaixonado por minha vizinha. Nunca passeamos tanto. Ela mora na casa nove; eu, na casa cinco; Dudu, na vinte e quatro. Nunca fomos tão amigos e felizes. Minha vizinha é ela, amor de quarenta anos. E tantos.

Querer mais para quê? (OS)