IMAGEM: LIKEDIN |
DORIA-CRIVELLA,
A ARMADILHA
Ao
contrário do que pensam os analistas vulgares,
o
resultado das eleições municipais não reduziu
as
chances de triunfo de um ‘outsider’
POR
DEMÉTRIO MAGNOLI
Publicado
em O Globo
Em
20/10/2016
Geralmente,
num sistema político polarizado, a derrota de um dos polos transfere a
hegemonia temporária para o outro. A regra indicaria que, após a derrota
histórica do PT, pontuada pelo impeachment e pelas imputações judiciais contra
Lula, abre-se uma era de predomínio do PSDB. Uma análise convencional dos
resultados das eleições municipais, nas quais os tucanos colecionam triunfos
quantitativos e qualitativos, reforça a ideia de uma oscilação decisiva do
pêndulo rumo ao partido de FHC.
Contudo,
acreditar nisso equivaleria a perder de vista o principal: a queda do
lulopetismo assinala o encerramento da bipolaridade que vincou a política
brasileira nas duas últimas décadas. Depois de Dilma, é o dilúvio. O sistema
político brasileiro nunca foi realmente bipolar. PSDB e PT revezaram-se no
poder, mas jamais configuraram algo parecido com um sistema bipartidário.
O
PMDB, essa federação de partidos pragmáticos regionais, funcionou como elemento
estabilizador, aliando-se ora com um, ora com o outro. A crise do sistema
acarretou a multiplicação de partidos e as heterogêneas alianças parlamentares
do lulopetismo. Isso que ficou conhecido como “presidencialismo de coalizão”
prossegue, agonicamente, no governo transitório de Michel Temer.
São
os dobres de finados da “Nova República”. As eleições municipais não devem ser
interpretadas como uma vitória tucana, mas como um paradoxal triunfo da chamada
“base de Temer”. A vitória eleitoral nada tem a ver com uma aprovação do
governo federal, que é majoritariamente rejeitado. Nas urnas, os eleitores
condenaram o lulopetismo, sufragando os candidatos antipetistas.
“O
PSDB atual, repleto de figuras parlamentares
ligadas
às igrejas neopentecostais, pouca relação
mantém com o partido de centroesquerda fundado
por Franco Montoro, Mário Covas e FHC”
Com
raras exceções, como o Ceará controlado pelo clã dos Ferreira Gomes ou o Acre
ainda sujeito à família Viana, os eleitos pertencem ao extenso arco da base
governista. Ao lado das variadas circunstâncias locais, o antipetismo operou
como força decisiva no ciclo eleitoral. A crise manifesta-se nitidamente como
derrocada do PT, mas atinge toda a elite política, vista como uma coleção quase
indiferenciada de máfias consagradas à captura de riquezas públicas.
Ao
longo dos anos de oposição, o PSDB perdeu sua identidade e dividiu-se,
irremediavelmente, entre três caciques hipnotizados por suas ambições pessoais.
A principal conquista tucana, a eleição de João Doria, em São Paulo, não
representa um triunfo do partido, mas uma vitória de Geraldo Alckmin no seu
feudo interno com José Serra.
Na
campanha, cuja tônica foi o antipetismo, o candidato surfou na aversão pública
à elite política, cobrindo-se com o manto ilusório da eficiência
administrativa. O PSDB atual, repleto de figuras parlamentares ligadas às
igrejas neopentecostais, pouca relação mantém com o partido de centroesquerda
fundado por Franco Montoro, Mário Covas e FHC.
O
horizonte de 2018 parece distante, além de sujeito às turbulências das
investigações policiais e judiciais de corrupção, que tendem a derrubar nomes
notórios do núcleo governista e de suas adjacências. Entretanto, na paisagem de
ruínas, não é difícil identificar os vetores políticos da disputa pelo
Planalto.
“A
difusão da antipolítica é um reflexo da crise terminal
da ‘Nova
República’, mas não uma solução para
o
desmoronamento do sistema político”
A
“esquerda” (aspas necessárias), um campo que vai do PDT de Ciro Gomes ao PSOL,
passando pelo PT, não é alternativa real de poder e usará as eleições para
tentar se reinventar, unida ou dividida, após o longo período de hegemonia
lulopetista. De fato, em princípio, o poder será disputado entre a “base de
Temer” e a possível candidatura de um “outsider”.
Eis
aí uma perspectiva duplamente assustadora. A “base de Temer” é um vasto
condomínio que reúne fragmentos saudáveis da elite política a incontáveis tons
de atraso, inclusive os setores ultrafisiológicos do PMDB e do “Centrão”, os
deploráveis cruzados das igrejas de negócios e uma direita nostálgica do regime
militar.
A
sua continuidade, por meio de um candidato tucano ou de algum personagem de
ocasião, representaria a tentativa de perenização do que há de mais anacrônico
na política brasileira. Significaria, entre outras coisas, o enterro da
oportunidade de erradicação da corrupção crônica que envenena a máquina da
administração pública.
Ao
contrário do que pensam os analistas vulgares, o resultado das eleições
municipais não reduziu as chances de triunfo de um “outsider”. Marina Silva, a
mais notória liderança com esse perfil, pode ter sucesso se optar por uma
aventura baseada na rejeição generalizada aos partidos tradicionais.
Porém,
evidentemente, um hipotético governo nascido nesse berço, carente de estruturas
partidárias sólidas, estaria condenado a extinguir-se em desastre. A difusão da
antipolítica é um reflexo da crise terminal da “Nova República”, mas não uma
solução para o desmoronamento do sistema político. Dias atrás, encontraram-se
Temer e FHC.
DEMÉTRIO MAGNOLI (FOTO: ARQUIVO GOOGLE) |
O
diálogo entre ambos tem algum sentido, se a meta for ajustar os ponteiros para
a votação de medidas urgentes, como a PEC do teto dos gastos e a reforma
previdenciária. Outra coisa é a soldagem de uma aliança estratégica, cujos
sinais aparecem aqui e ali, como no apoio dos tucanos à candidatura de Marcelo
Crivella.
Seguindo
essa rota, o PSDB confirmaria seu declínio, prendendo-se à armadilha do atraso.
Existe um amplo eleitorado órfão de representação política funcional. O Brasil
sem voz defende a economia de mercado, redes adequadas de proteção social e
forte prioridade para a qualificação da educação e da saúde públicas.
Quer
traçar uma fronteira intransponível entre a alta burocracia administrativa e as
empresas estatais, de um lado, e os partidos políticos, de outro. Almeja um
Estado efetivamente laico e cultiva os valores da liberdade individual e da
tolerância à diversidade.
No
horizonte de 2018, a emergência de uma plataforma desse tipo exige a cisão da
“base de Te- mer” e uma profunda reunificação política de centro-esquerda. Nada
disso se fará à sombra do paradigma Doria-Crivella.
(*) Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana, especialista em política internacional e autor dos seguintes livros, entre outros: 'Gota de Sangue - História do Pensamento Racial' e 'O Leviatã Desafiado'.
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