MILÍCIA SOB O COMANDO DO REI DO CANGAÇO (ISTO É) |
A MILÍCIA DE CALHEIROS
E O ABUSO DE PODER
Nenhum outro corpo policial pode existir na República.
Se não fosse assim, cada órgão de poder criaria
POR MODESTO CARVALHOSA
PUBLICADO NO ESTADÃO
EM 29/10/2016
A prisão, no recinto do Senado Federal, do chefe da sua milícia – o
Pedrão – e três de seus companheiros põe à mostra até que ponto os donos
daquela Casa, nas últimas décadas, a tornaram um feudo para a prática de
grandes crimes e de refúgio de notórios corruptos. Para tanto os sucessivos
presidentes do outrora respeitável Senado da República formaram uma milícia,
totalmente à margem do sistema constitucional, a que, pomposamente, denominaram
“Polícia Legislativa”, também alcunhada de “Polícia do Senado”.
Não se podem negar a esse agora notório exército particular
relevantes trabalhos de inteligência – do tipo CIA, KGB –, como a célebre
violação do painel de votações daquele augusto cenáculo, ao tempo do saudoso
Antônio Carlos Magalhães e do lendário José Roberto Arruda, então senador e
depois impoluto governador do Distrito Federal. E nessa mesma linha de
sofisticação tecnológica a serviço do crime – agora de obstrução de Justiça – a
milícia daquela Casa de Leis promove “varreduras”, nos gabinetes e nos solares
e magníficos apartamentos onde vivem esses varões da República, a fim de
destruir qualquer prova de áudio que porventura possa a Polícia Federal obter
no âmbito das investigações instauradas pelo STF.
Acontece que o poder de polícia só pode ser exercido pelos órgãos
instituídos na Carta de 1988, no seu artigo 144, e refletidos nos artigos 21,
22 e 42, dentro do princípio constitucional de assegurar as liberdades
públicas. Assim, somente podem compor o organograma da segurança pública
constitucional a Polícia Federal (incluindo a Rodoviária e a Ferroviária) e as
Polícias Civis e Militares dos Estados (incluindo o Corpo de Bombeiros).
Nenhum outro corpo policial pode existir na República. Se não fosse
assim, cada órgão de poder criaria a sua “polícia” própria, como a que existe
no Senado. Também seriam criadas tais forças marginais nos tribunais superiores
e nos Tribunais de Justiça dos Estados, nas Assembléias Legislativas, nos
Tribunais de Contas, nas Câmaras Municipais, cada um com seu exército particular
voltado para contrastar e a se opor aos órgãos policiais que compõem o estrito
e limitado quadro de segurança pública estabelecido na Constituição.
RÉUNAN, VULGO CORISCO, FAZENDO BICO (FOTO: GGN) |
Cabe, a propósito, ressaltar que todos os órgãos policiais criados
na Carta Magna de 1988 estão submetidos à severa jurisdição administrativa do
Poder Executivo, da União e dos Estados, sob o fundamento crucial de que nenhum
ente público armado pode ser autônomo, sob pena de se tornar uma milícia. Nem
as Forças Armadas – Exército, Marinha e Aeronáutica – fogem a essa regra de
submissão absoluta ao Ministério da Defesa, pelo mesmo fundamento.
E não é que vem agora o atual chefe da nossa Câmara Alta declarar
textualmente que a “polícia legislativa exerce atividades dentro do que
preceitua a Constituição, as normas legais e o regulamento do Senado”? Vai mais
longe o ousado presidente do Congresso Nacional, ao afirmar que o Poder
Legislativo foi “ultrajado” pela presença, naquele templo sagrado, da Polícia
Federal, autorizada pelo Poder Judiciário. Afinal, para o senhor Renan, o
território do Senado é defendido pela chamada polícia legislativa. Ali não pode
entrar a Polícia Federal, ainda mais para prender o próprio chefe da milícia –
o Pedrão.
E com esse gesto heróico o preclaro chefe do Congresso Nacional proclama
mais uma aberração: o da extraterritorialidade interna.
Como se sabe, a extraterritorialidade é concedida às embaixadas
estrangeiras que se credenciam num país e ali têm instalada a sua representação
diplomática. Trata-se, no caso, da extraterritorialidade externa, que garante a
inviolabilidade da embaixada e a imunidade de jurisdição de seus membros, em
tempos de paz e de guerra.
Mas não para aí a extraterritorialidade interna proclamada pelo
grande caudilho do Senado. As palacianas residências e os apartamentos dos
senadores e senadoras tampouco podem ser violadas pela Polícia Federal.
Trata-se de um novo conceito de Direito Internacional Público inventado pelo
grande estadista pátrio: a noção de extraterritorialidade estendida. Ou seja, o
domicílio de um representante do povo é incólume às incursões da Polícia
Federal autorizadas pelo Poder Judiciário.
Foi o que ocorreu em agosto, quando o ilustre marido de uma senadora
do Paraná foi preso na residência do casal e dali foram retirados documentos comprometedores.
A reação foi imediata: marido de senadora, estando na casa onde com ela
coabita, não pode ser ali preso, pois se trata de espaço extraterritorial
interno estendido!
“E vivam o foro privilegiado, a futura Lei de Abuso de Autoridade
e os demais instrumentos e interpretações, omissões e postergações
do STF, que, cada vez mais, garante a impunidade
desses monstros que dominam o nosso Congresso Nacional,
sob o manto de lídimos representantes do povo brasileiro”
E assim vai o nosso país, que não para de andar de lado em matéria
de instituições republicanas. E o fenômeno é impressionante. Basta o sr.
Calheiros declarar que o território do Senado é inviolável para que a tese seja
acolhida por um ministro do Supremo, numa desmoralização do próprio Poder
Judiciário, que se autodesautoriza, na pessoa do ilustre magistrado de primeiro
grau que acolheu as providências da Polícia Federal no território livre do
Senado Federal.
E, last but not least, o senhor das Alagoas, não contente com o
reconhecimento da legitimidade de sua milícia e da extraterritorialidade
interna, por força do despacho do ministro Teori Zavascki, propõe-se, com o
maior rompante, próprio dos destemidos senhores medievais, a cercear as
atividades da Polícia Federal, do Ministério Público e do Poder Judiciário, sob
a égide do abuso do poder, para, assim, livrar-se, ele próprio, e liberar
dezenas de representantes do povo no Congresso do vexame das “perseguições
políticas” que se escondem nos processos por crime de corrupção, que nunca
praticaram, imagine!
E vivam o foro privilegiado, a futura Lei de Abuso de Autoridade e
os demais instrumentos e interpretações, omissões e postergações do STF, que,
cada vez mais, garante a impunidade desses monstros que dominam o nosso
Congresso Nacional, sob o manto de lídimos representantes do povo brasileiro.
Que vexame, que vergonha!
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