10.03.2016 – O GLOBO
SIGA O PEDALINHO
(Por Demétrio Magnoli) “Esta
pergunta não está à altura da Polícia Federal”, reagiu um arrogante Lula ao ser
indagado, na fatídica sexta-feira, sobre os pedalinhos mantidos no sítio de
Atibaia. Mas a lógica da pergunta decorre da regra “siga o dinheiro”. No rastro
dos pedalinhos, há muito mais que a propriedade do próprio sítio. Eles indicam
o caminho da Internacional lulista — uma articulação que, ao contrário das
internacionais operária, socialista, comunista e trotskista, rege-se por um
misto de política e negócios.
Do
Casco Antiguo da Cidade do Panamá, não se avista mais a península. “O horizonte
do Golfo se perdeu”, lamenta a presidente de uma organização consagrada à proteção
do patrimônio histórico do país ístmico. De fato, em 20 de maio de 2011, foi
inaugurado o viaduto de seis pistas e 2,8 quilômetros que rasga o mar à frente
do centro histórico, uma obra da Odebrecht contratada por US$ 780 milhões. Lula
participou da inauguração, a convite do presidente panamenho Ricardo
Martinelli, com quem participaria de um jantar oferecido pela Odebrecht. O
evento contou com a presença do ministro José Domingo Arias, candidato do
presidente a sucedê-lo, que acabou derrotado em 2014, apesar dos esforços do
marqueteiro João Santana.
Lula,
Odebrecht, Santana. Na Internacional lulista, o quarto componente é o BNDES,
responsável pelo financiamento do metrô da capital panamenha e da Autopista
Madden-Colón, obras tocadas pela mesma Odebrecht, que venceu todas as grandes
licitações no governo Martinelli. O Panamá não é um caso singular: o esquema
quadripartite repetiu-se na Argentina (Ferrovia Sarmiento), no Peru
(Hidrelétrica de Chaglla), na Venezuela (ponte sobre o Orenoco e metrô de Caracas),
na República Dominicana (Termelétrica de Punta Catalina e 16 outras obras) e em
Angola (Hidrelétrica de Lauca e dezenas de outras obras). Sem Santana, mas com
a Odebrecht e o BNDES, a Internacional operou em Moçambique (BRT de Maputo e
Aeroporto de Nacala), no Equador (hidrelétricas de San Francisco e Manduriacu)
e em Cuba (Porto de Mariel). Finalmente, com a Odebrecht e Santana, mas sem o
BNDES (ufa!), seus tentáculos alcançaram El Salvador.
“Lula
é uma fonte de inspiração para a América Latina”, proclamou Danilo Medina,
presidente da República Dominicana, em janeiro de 2013, durante uma visita de
Lula patrocinada pela Odebrecht e seguida pela concessão de vultosa linha de
financiamento do BNDES. A Internacional dos negócios expandiu-se em países sob
governos “progressistas”, um adjetivo com dúbios significados políticos. Na
América Latina, apoiou-se nos ombros do chavismo, do kirchnerismo e do
castrismo, mas estabeleceu laços com líderes populistas como Ollanta Humala, do
Peru, Mauricio Funes, de El Salvador, e o próprio Medina. Na África, ligou-se
ao ditador angolano José Eduardo dos Santos, do MPLA, presidente desde 1979,
que converteu os processos eleitorais em farsas macabras e comanda um dos
regimes mais corruptos do mundo.
“Num
país tão carente em infraestruturas e saneamento básico
como
o Brasil, falta uma justificativa plausível
para
o direcionamento de capitais escassos
ao metrô
de Caracas, ao viaduto monumental do Panamá,
ao
Porto de Mariel ou às múltiplas obras
do
regime cleptocrático angolano”
Tudo
começou durante os mandatos de Lula, mas prosseguiu sob Dilma Rousseff. Bombado
por multibilionárias transferências de recursos oriundos da emissão de dívida
pública, o BNDES lançou-se numa escalada de financiamentos no exterior. A
Odebrecht, a maior beneficiária deles, obteve cerca de US$ 8 bilhões. Dias
atrás, na esteira do depoimento de Lula, o presidente do Instituto Lula, Paulo
Okamotto, disse que será preciso “dialogar com o povo brasileiro” para
“explicar como são feitas as palestras, em que países aconteceram”. Há muito a
explicar, mas inexiste mistério sobre os países selecionados: em geral,
coincidem com empreendimentos da Odebrecht subsidiados pelo BNDES.
Lula
deixou a Presidência, mas não o poder, o que pode ser verificado pelas quedas
sucessivas dos ministros Aloizio Mercadante, Joaquim Levy e José Eduardo
Cardozo. O Instituto Lula e a empresa que agencia as palestras do ex-presidente
receberam R$ 56 milhões em quatro anos. Lula tornou-se, ao lado de Bill
Clinton, o palestrante mais caro do planeta. Sem o BNDES, tais feitos seriam
impossíveis. Luciano Coutinho, presidente do banco público, deveria “explicar”
ao “povo brasileiro” os critérios de seleção dos países e empreiteiras
agraciados por empréstimos subsidiados. Até hoje, ele proferiu platitudes sobre
o estímulo a negócios de empresas brasileiras no exterior, mas nunca enfrentou
a questão do custo de oportunidade desses financiamentos. Num país tão carente
em infraestruturas e saneamento básico como o Brasil, falta uma justificativa
plausível para o direcionamento de capitais escassos ao metrô de Caracas, ao
viaduto monumental do Panamá, ao Porto de Mariel ou às múltiplas obras do
regime cleptocrático angolano.
“Há
muito a explicar (sobre as palestras de Lula), mas inexiste mistério
sobre
os países selecionados:
em
geral, coincidem com empreendimentos da Odebrecht
subsidiados
pelo BNDES”
A
ciranda financeira no duto que interliga o BNDES, a Odebrecht e o Instituto
Lula seria suficiente, num país sério, para destruir a carreira política de
Lula e ensejar processos judiciais devastadores. Tudo se complica com as
evidências de que, muitas vezes, o triângulo transforma-se em retângulo pela
adição dos serviços de João Santana, proprietário de uma empresa de marketing
político que já confessou operar caixa dois nas suas aventuras internacionais.
As excessivas coincidências sugerem que a Internacional lulista, como sua
predecessora comunista, organiza-se sob a égide do “centralismo democrático”.
Num
país sério, os pedalinhos, esses singelos presentes aos netinhos de Lula,
poderiam ser ignorados por policiais, procuradores e juízes. Mas, no Brasil,
onde o “governo popular” dedicou-se à modernização das mais tradicionais
práticas patrimonialistas, a Polícia Federal tinha o dever de formular as
perguntas que provocaram a indignação de Lula. Os pedalinhos não são
patrimônios, mas indícios. Seguindo as delicadas ondulações causadas pelo
movimento deles, chegamos a um projeto internacional que associa poder e
dinheiro: a geopolítica do lulismo.
Demétrio Magnoli é doutor em
geografia humana,
especialista em política internacional
e autor dos seguintes
livros, entre outros:
'Gota de Sangue -
História do Pensamento Racial' e 'O Leviatã Desafiado'.
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