07.03.2016 – FOLHA DE S.
PAULO
ATÉ OS ORIXÁS ESTÃO DE SACO
CHEIO
(Por Luiz Felipe Pondé) A
crença nos espíritos data da pré-história. E tudo que data da pré-história e
dura até hoje implica razoável sucesso evolucionário. Levo a pré-história muito
a sério e a julgo tão importante quanto os últimos 200 anos para que possamos
entender os humanos. Só pessoas superficiais em repertório e pobres de espírito
avaliam a humanidade sem levar em conta o Alto Paleolítico (nosso melhor
momento).
A
escuridão do mundo e seus ruídos, a presença dos sonhos à noite e o medo da
morte seguramente pavimentaram o caminho para o mundo dos espíritos.
Uma
coisa que sempre me chamou a atenção na crença nos espíritos é como eles estão
sempre envolvidos com as coisas terrenas. Afinal, se já desencarnaram, qual a
razão de ficarem se enrolando com os assuntos dos encarnados? Sei da resposta
padrão: missão.
Muitos
desses espíritos precisam cuidar dos assuntos terrenos para que eles mesmos
ganhem alguma luz em suas evoluções espirituais. Como parte importante dessa
evolução espiritual está a necessidade de nos ajudar em nossos rolos. Seres
humanos sempre patinam nas mesmas coisas.
“Na
realidade, existem três grandes áreas de choque
na
vida das pessoas: 1. trabalho e dinheiro, 2. saúde e doença,
3.
amor e família”
Já
tive algumas oportunidades de ver orixás e entidades variadas, como Exu (em si
um orixá), Pomba Gira, Caboclo, Preto Velho e outros, em ação. Em algumas
dessas vezes cheguei a conversar com eles, e impressiona uma certa sabedoria
popular presente em suas falas. Na realidade, existem três grande áreas de
choque na vida das pessoas: 1. trabalho e dinheiro, 2. saúde e doença, 3. amor
e família. Se você pensar um pouco, verá que a maioria das coisas que nos
afetam, transita, pelo menos, por uma dessas três áreas.
Muitas
vezes, suspeito que algumas dessas entidades entendem melhor sobre humanos do
que muitos professores e "cientistas" das humanidades.
Por
isso, talvez, as falas desses espíritos nos soem tão significativas. Seja
porque eles (os espíritos) de fato entendem das nossas agonias, seja porque os
pais de santo e as mães de santo é que entendem dessas nossas agonias, como
pensa o cético. De qualquer forma, não me interessa a crítica cética aqui.
Interessa-me apenas como muitas dessas entidades falam de coisas que de fato
nos tocam no dia a dia. Talvez mesmo porque sejamos banais e comuns: todos nós
vivemos quase o tempo todo passando por aquelas três grandes áreas de choque
descritas acima.
“Posso
imaginar a irritação de um ser que já passou
pela Terra antes de ela ser tomada pela
comunidade de retardados
em
rede que hoje assola o mundo”
Numa
conversa familiar e entre amigos, uma dessas pessoas muito conhecedoras
"do ramo" soube de um relato que me chamou a atenção, e que quero
partilhar com você aqui, cara leitora e caro leitor.
O
relato é o seguinte. Numa gira (evento em que entidades da umbanda atendem
pessoas em suas agonias cotidianas), um Caboclo (caboclos são da linhagem de
Oxóssi) de grande experiência em atendimento (cujo "cavalo" é um pai
de santo de enorme sucesso no ramo) se aborreceu profundamente com as demandas
de seus "clientes" ali presentes. Vale salientar para os
especialistas que se tratava de um terreiro de candomblé que tem giras de
umbanda também, o que é cada vez mais comum.
Precisamos
lembrar que, mesmo no ramo de atendimento espiritual, você deve tomar cuidado
para não "chutar o saco do cliente", porque ele pode procurar outro
orixá, de outro terreiro, para se consultar. E, normalmente, consultas assim
podem se transformar em "trabalhos" de todos os tipos,
"trabalhos" esses que giram a economia do terreiro e de quem se
dedica a essa profissão. Nem só do verbo vive o homem, mas também do pão e da
carne.
A
irritação do Caboclo (eu sei o nome dele, mas não quero expô-lo aqui) foi com
as "conversinhas" de seus clientes ali presentes. Segundo o Caboclo,
todo mundo só queria falar com ele sobre "bobagens mesquinhas". E
ele, vindo de "tão longe", perdera a paciência para atender pessoas
tão bobas. Para nosso Caboclo, o irritante era a "infantilidade" das
pessoas ali presentes.
Posso
imaginar a irritação de um ser que já passou pela Terra antes de ela ser tomada
pela comunidade de retardados em rede que hoje assola o mundo. Até os orixás
estão de saco cheio. Caboclo de coragem esse. E sábio.
ILUSTRAÇÃO: GUSTAVO DUARTE |
Luiz Felipe Pondé é pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa).)
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