ALMOÇO MINEIRO
Éramos dezesseis,
incluindo quatro automóveis, uma charrete, três diplomatas, dois jornalistas,
um capitão-tenente da Marinha, um tenente-coronel da Força Pública, um
empresário do cassino, um prefeito, uma senhora loura e três morenas, dois
oficiais de gabinete, uma criança de colo e outra de fita cor-de-rosa que se
fazia acompanhar de uma boneca.
Falamos de vários assuntos
inconfessáveis. Depois de alguns minutos de debates ficou assentado que Poços
de Caldas é uma linda cidade. Também se deliberou, depois de ouvidos vários
oradores, que estava um dia muito bonito. A palestra foi decaindo então, para
assuntos muitos escabrosos: discutiu-se até política. Depois que uma senhora
paulista e outra carioca trocaram idéias a respeito do separatismo, um
cavalheiro ergueu um brinde ao Brasil. Logo se levantaram outros, que,
infelizmente, não nos foi possível anotar, em vista de estarmos situados na
extremidade da mesa. Pelo entusiasmo reinante supomos que foram brindados o
soldado desconhecido, as tardes de outono, as flores dos vergéis, os
proletários armênios e as pessoas presentes. O certo é que um preto fazia
funcionar a sua harmônica, ou talvez a sua concertina, com bastante sentimento.
Seu Nhonhô cantou ao violão com a pureza e a operosidade inerentes a um velho
funcionário municipal.
Mas nós todos
sentíamos, no fundo do coração, que nada tinha importância, nem a Força Pública
, nem o violão de seu Nhonhô, nem mesmo as águas sulfurosas. Acima de tudo
pairava o divino lombo de porco com tutu de feijão. O lombo era macio e tão
suave que todos imaginamos que o seu primitivo dono devia ser um porco
extremamente gentil, expoente da mais fina flor da espiritualidade suína. O
tutu era um tutu honesto, forte, poderoso, saudável.
É inútil dizer
qualquer coisa a respeito dos torresmos. Eram torresmos trigueiros como a doce
amada de Salomão, alguns louros, outros mulatos. Uns estavam molinhos, quase
simples gordura. Outros eram duros e enroscados, com dois ou três fios.
Havia arroz sem
colorau, couve e pão. Sobre a toalha havia também copos cheios de vinho ou de
água mineral, sorrisos, manchas de sol e a frescura do vento que sussurrava nas
árvores. E no fim de tudo houve fotografias. É possível que nesse intervalo
tenhamos esquecido uma encantadora lingüiça de porco e talvez um pouco de
farofa. Que importa? O lombo era o essencial, e a sua essência era sublime. Por
fora era escuro, com tons de ouro. A faca penetrava nele tão docemente como a
alma de uma virgem pura entra no céu. A polpa se abria, levemente enfibrada,
muito branquinha, desse branco leitoso e doce que têm certas nuvens às quatro e
meia da tarde, na primavera. O gosto era de um salgado distante e de uma
ternura quase musical. Era um gosto indefinível e puríssimo, como se o lombo
fosse lombinho da orelha de um anjo ouro. Os torresmos davam uma nota marítima,
salgados e excitantes da saliva. O tutu tinha o sabor que deve ter, para uma
criança que fosse gourmet de todas as terras, a terra virgem recolhida muito
longe do solo, sob um prado cheio de flores, terra com um perfume vegetal diluído
mas uniforme. E do prato inteiro, onde havia um ameno jogo de cores cuja nota
mais viva era o verde molhado da couve — do prato inteiro, que fumegava
suavemente, subia para a nossa alma um encanto abençoado de coisas simples e
boas.
Era o encanto de Minas.
São Paulo, 1934.
Texto extraído do
livro "Morro do Isolamento", editora Record
Rio de Janeiro, 1982,
pág. 121.as".
Muito lindo. Adorei!
ResponderExcluirMestre Braga! O papa da crônica.
ExcluirAdoro a "fala" fluida do Rubem Braga! Essa deu água na boca...literalmente!
ResponderExcluirO cara escrevia muito bem, bem demais.
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