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A CRÔNICA COMO GÊNERO
E COMO ANTIJORNALISMO
Vida é o que não falta no jornal. Há até demais. O que falta
é uma qualidade (ou defeito) que foi banida das redações
e se tornou a besta-negra do jornalismo: a emoção
POR CARLOS HEITOR CONY
FOLHA DE S. PAULO – 16/10/1998
A crônica só é gênero menor em termos de literatura. Admite-se como
inabalável a certeza de que a literatura tende a ser perene, intemporal. Não
faltam teóricos para garantir que a arte, nela incluindo a arte literária,
existe para superar a morte. E, se a literatura busca a infinitude, a crônica é
crônica mesmo, expressão de finitude. É temporal, fatiada da realidade e
desvinculada do tempo maior que é o da literatura como arte.
Mas daí não se deve concluir que ela seja uma defunta. Dizem que se
trata de produto típico do jornalismo brasileiro, mas não exclusivo. Sendo por
definição um texto datado, tem fases, sacrifica-se a modismos, mas, devido à
elegância ou habilidade de seus cultores, consegue sobreviver em diferentes
manifestações pleonasticamente crônicas: como gênero (crônica) e como vinculada
a um tempo (crônica também).
Temos a crônica esportiva, a social, a policial, a política, a
econômica. Elas se diferenciam do "artigo" porque é basicamente
centrada num eixo permanente: o "eu" do autor. Daí que o gênero é
romântico por definição e necessidade.
O artigo procura a objetividade, a clareza, o raciocínio, o
desdobramento de premissas e uma conclusão. Baseia-se na fonte de informação
cultural ou factual, expressa-se numa linguagem apropriada para ser uma coisa e
outra, ou seja, objetiva e informativa.
Já a crônica, gravitando em torno dos mesmos segmentos (política,
esporte, economia, polícia, sociedade etc.) tem menos ou nenhum compromisso com
a objetividade ou a informação. Sua validade (nunca a necessidade) dependerá da
qualidade do texto em si. Há cronistas esportivos de excelente texto (Mário
Filho e Nelson Rodrigues no passado, Armando Nogueira hoje), como há bons
cronistas em cada um desses nichos jornalísticos.
CONY, NA FOTOGRAFIA DE NELSON PEREZ |
Evidente que, entre os segmentos citados, tem destaque a literatura,
daí resultando que a crônica literária tem um núcleo afim ao do romance, do
conto e da poesia. Foi nele que tiveram glória Humberto de Campos e Rubem
Braga, para citar um antigo e um mais recente. Mas o maior de todos é mesmo
Machado de Assis, que fazia uma crônica bastante eclética, pulando de um nicho
ao outro e, muitas vezes, absorvendo num único texto todos os segmentos,
inclusive o literário.
A imprensa moderna, altamente competitiva e cara, não chegou a
mutilar o gênero, mas direcionou-o a estratégia geral do que hoje se chama
"comunicação". Numa palavra: exige que tudo o que é veiculado no
jornal ou revista, das condições do tempo ao desempenho das bolsas, seja útil
ao leitor, seja aquilo que nas redações é chamado de "serviço".
Daí que sobra um espaço reduzido ao cronista sem assunto, sem
informação e sem outro serviço que não o estilo mais sofisticado que só será
apreciado por determinados leitores e não pela massa consumidora do jornal ou
revista.
Quanto à falta de vida que Rubem Braga condenava na imprensa em
geral, justificando dessa forma sua brilhante militância na crônica, prefiro
discordar com alguma veemência. Vida é o que não falta no jornal. Há até
demais. O que falta é uma qualidade (ou defeito) que foi banida das redações e
se tornou a besta-negra do jornalismo: a emoção.
Temos a vida demais – disse acima. Desastres, inundações, estupros,
explorações da fé e do mercado, remédios falsificados, políticos corrompidos e
corruptores, vedetes grávidas ou a engravidar, bolsas despencando, atletas se
dopando – tudo isso é vida. Vida que pode ser bem ou mal descrita pelos
cronistas de cada setor.
Banida do texto jornalístico, a emoção foi considerada cafona,
desnecessária, primária. Nelson Rodrigues reclamava da falta de pontos de
exclamação nas manchetes, mesmo nas mais prosaicas. Exemplo: "Pânico na
Bolsa de Nova York!" é uma coisa. Sem exclamação é outra.
Não se conclua que a emoção seja simples pontuação. Ela é uma forma
de ver o mundo, um estilo de sofrer ou de gozar a vida. Dou o exemplo que mais
tenho à mão, que é o meu mesmo. Quando morreu Mila, minha maior amiga, passei
alguns dias sem escrever a crônica diária na página 2 da Folha. Pediram-me que, ao
retomar o ofício, explicasse aos leitores que não fora censurado nem reprimido,
pois vinha de uma série de artigos contundentes contra o governo da época – que
por sinal é o mesmo.
Fiz a crônica sobre a morte de Mila, um texto gemebundo, sangrento
na dor que sentia – e ainda sinto, pois ainda não tive coragem de substituí-
la.
Houve um surpreendente retorno, a ponto de receber reclamações do
serviço de atendimento aos leitores do jornal que desejavam ter acesso ao meu
telefone, fax ou e-mail para mandarem mensagens de consolo e carinho. Nada
menos jornalístico, nada mais churrascaria.
Antes de ser um leitor, o consumidor de jornal é um ser humano
tornado carente pela solidão, pelo egoísmo (próprio e alheio), pelo nenhum
sentido da sociedade como um todo. Quando um cara tem coragem de gritar que
está sofrendo, fatalmente encontra alguém que o compreende e, algumas vezes, o
ame. Isso não dá apenas samba. Dá crônica também.
LEIA A CRÔNICA "MILA"
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