ILUSTRAÇÃO: OMAR VINOLE |
MUITO
LONGE DE LENIN
Nos
tempos da Revolução Comunista de Outubro,
ninguém
chegava lá pelo caixa dois de empreiteiras
VIA
BLOG DO AUGUSTO NUNES
26/03/2017
Publicado
na edição impressa de VEJA
Todos
podem ir se preparando desde já. Está aí à frente, tão certo quanto a próxima
fase da lua, o centenário da Revolução Comunista de Outubro de 1917 — e vai se
falar, escrever e discursar sobre o assunto como se o golpe de Estado então
comandado por Lenin, com a formação do regime soviético na Rússia, tivesse sido
o maior evento da história da humanidade desde que o macaco desceu da árvore
para arriscar a sorte na tentativa de levar uma vida inteligente em terra
firme. É curioso que o primeiro centenário da Revolução de 1917 venha a ocorrer
quando o regime criado por ela já não existe mais — foi demolido, sem o disparo
de um único buscapé por parte dos adversários, em consequência de seus
fracassos, sua demência interna e suas enfermidades de nascença. É também
interessante notar que o regime revolucionário produziu uma ditadura absoluta
do primeiro ao último dia de sua existência. Vai se comemorar, nesse caso, a fundação
de uma ditadura que já terminou? A abolição do capitalismo no mundo, objetivo
final da revolução, transformou-se há longos anos numa piada, por agredir ao
mesmo tempo a natureza humana, o progresso, a tecnologia e a razão. O
comunismo, enfim, acabou sendo uma das experiências que deram mais errado na
história política dos seres vivos. De novo: dá para comemorar uma coisa dessas?
Sim, dá. Podem ter certeza de que dá.
É
compreensível, levando-se em conta a quantidade cada vez maior de “gente de
esquerda” espalhada hoje em dia mundo afora — e “gente de esquerda” tem entre
os seus deveres mentais prestar reverência automática a essas assombrações do
passado. Bem poucos, aí, sabem o que foi a Revolução Soviética ou mostram a
menor vontade de investir uma meia horinha do seu tempo tentando aprender
alguma coisa a respeito. Aprender para quê? O que interessa é acreditar — o
que, além disso, dá muito menos trabalho. A verdade é que no momento é mais
fácil ser de “esquerda” do que não ser; as comodidades para isso são
incomparáveis, e nem sempre foi assim. Ao contrário, já foi difícil — e
perigoso. Acredite se quiser, mas houve um tempo neste país em que você podia
acabar na cadeia por ser de esquerda. Para Lenin, especialmente, sempre foi
muito difícil ser Lenin. Até assumir o comando da União Soviética, ou pouco
antes, o homem praticamente não tinha onde cair morto. Vivia a dois passos da
prisão, exilado, em desconforto material extremo, sem ajuda da mídia, dos
formadores de opinião e da classe artística. Ninguém chegava lá, na época,
financiado pelo imposto sindical, por comerciais de televisão milionários e
pelo caixa dois de empreiteiras de obras públicas. A vida era dura. Para ser de
esquerda, o sujeito tinha, realmente, de ser de esquerda.
Hoje
ser de esquerda no Brasil é a coisa mais fácil desta vida. Você pode ser
ministro do governo de Michel Temer e ser de esquerda. Pode ser um Eike Batista
e, ao mesmo tempo, “campeão nacional” dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff.
Pode ser o ex-governador Sérgio Cabral, que viveu anos como um herói do PT.
Pode receber prêmio literário de 100 000 euros, dos quais o governo brasileiro
paga a metade, e discursar contra o “golpe” na hora de pegar o dinheiro. Pode
ser ministro do Supremo Tribunal Federal, depois de advogar para o maior
partido da esquerda nacional ou para “movimentos sociais” que se dizem
“revolucionários”. Pode, como militante, receber verbas do Banco do Brasil,
cesta básica e lanche quando é chamado para se manifestar na rua, além de
diária e ônibus fretado. Pode estar na cadeia por corrupção. Pode ter emprego
no Itamaraty. Pode ser reitor, procurador público, arcebispo. Pode trabalhar na
Rede Globo. Não precisa ler um único livro – Marx, então, nem pensar. Não
precisa, Deus o livre, exigir a extinção da propriedade privada, sobretudo a
sua. Não precisa entrar no PT e pagar contribuição mensal de 10% do que ganha.
É
preciso, apenas, ter “posição” sobre uns tantos assuntos – mas quem já teve de
tirar do bolso um único real para “ter posição” sobre alguma coisa? Não num
país como o Brasil de hoje, onde, além do mais, o risco de aparecer como
“progressista” etc. está muito abaixo de zero. E quais são as “posições” que o
brasileiro interessado em tirar a sua certidão de “pessoa de esquerda” deve
assumir? Alguns exemplos:
–
Ser a favor das normas que permitem aos professores da rede estadual de ensino
de São Paulo faltar até um dia sim, um dia não ao trabalho, sem desconto nenhum
no salário, é claro – incluindo o vale-transporte e o auxílio-alimentação referentes
aos dias em que o professor não foi à escola;
–
Ser contra o aumento da velocidade de tráfego, para um máximo de 90 quilômetros
por hora, nas avenidas marginais de São Paulo. Se possível, noticiar em tom de
denúncia que, logo no primeiro dia com os novos limites, ocorreu um acidente de
carro numa das marginais. O motorista estava bêbado. Além disso, ninguém se
machucou – nem ele;
–
Ser contra qualquer mudança na legislação trabalhista. Num momento em que 12
milhões de brasileiros estão desempregados, sustentar que as pessoas não
precisam de emprego, e sim de proteção — mesmo que não tenham mais emprego
nenhum para ser protegido;
–
Ser a favor da aposentadoria das mulheres aos 50 anos, e de todas as regras
parecidas com essa — a começar pelas que permitem a aposentados do serviço
público ganhar mais de 50 000 reais por mês, ou 100 000, ou seja lá quanto for.
Considerar correto que a totalidade da população pague, no fim das contas, a
aposentadoria dos funcionários públicos — hoje, na média, cerca de 7 500 reais
por mês. É quase o equivalente ao valor médio da aposentadoria dos funcionários
públicos franceses, de 2 500 euros mensais. O PIB per capita da França, pela
última tabela do Banco Mundial, é de 40 000 dólares por ano, quatro vezes o do
Brasil;
– Ser a favor de pichadores ou “grafiteiros”
de paredes, muros, viadutos, em prédios particulares e públicos. Considerar que
quem não concorda está adotando uma atitude “higienista” — ou seja, a favor da
higiene, considerada um hábito de direita;
–
Ser contra o “agronegócio” e a favor da “agricultura familiar”. E quanto aos
agricultores “familiares” que trabalham junto a grandes empresas agrícolas? Não
há resposta para essa questão. Comentários demonstrando que o valor da terra,
hoje, é dado pela sua capacidade de produzir, e não pelo seu tamanho nem por
outros fatores, são tidos como argumentos a favor do “latifúndio”, do
capitalismo na agricultura e do atraso. (A área rural vai pôr 240 bilhões de
reais em circulação no interior do Brasil em 2017.)
–
Ser contra os defensivos agrícolas de qualquer tipo, descritos como
“agrotóxicos”, “venenos” ou “agentes químicos”. Considerar como ato de
destruição da natureza a utilização de qualquer área de terra para produção em
grande volume de alimentos. Denunciar como delito social o cultivo de pastagens
e a criação de animais de corte;
–
Acreditar que a única maneira de reduzir a pobreza é tirar dos ricos; a ideia
de alcançar esse objetivo por meio da criação de mais riquezas é considerada de
direita. Só o Estado, com a arrecadação de impostos — que, idealmente, devem
ser sempre maiores —, tem a capacidade de distribuir renda. Cobrar imposto, por
esse entendimento, é criar riqueza. Pelo mesmo entendimento, os pobres só
existem porque existem os ricos. Na verdade, acredita-se que o 1% mais rico da
população mundial tirou a sua fortuna dos demais 99%;
–
Assinar manifestos de intelectuais, mesmo que você confunda Kant com Clark
Kent.
É
o que temos, hoje. Adeus, Lenin.
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