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DEU
ERRADO
Como
seria possível, numa sociedade racional, consumir
duas
unidades para produzir uma — e achar que está tudo bem?
Publicado
na edição impressa de VEJA
Aconteceu
numa sessão qualquer de uma dessas comissões da Câmara dos Deputados em que
pouca gente fala, pouca gente escuta e quase ninguém presta atenção, mas nas
quais, de vez em quando, é possível ficar sabendo das coisas mais prodigiosas.
No caso, o deputado Nelson Marchezan Júnior, do Rio Grande do Sul, tomou a
palavra a certa altura dos procedimentos e revelou o seguinte: a Justiça do
Trabalho deu aos trabalhadores brasileiros que recorreram a ela no ano passado
um total de 8 bilhões de reais em
benefícios; no decorrer desse mesmo ano, gastou 17 bilhões com suas próprias despesas de funcionamento. É isso
mesmo que está escrito aí. A Justiça do Trabalho brasileira custa em um ano,
entre salários, custeio e outros gastos, o dobro do que concede em ganhos de
causa à classe trabalhadora deste país. Pela aritmética elementar, calculou
então o deputado, o melhor seria a Justiça do Trabalho não existir mais, pura e
simplesmente. Se o poder público tirasse a cada ano 8 bilhões de reais do
Orçamento e entregasse essa soma diretamente aos trabalhadores que apresentam
queixas na Justiça trabalhista, todos eles ficariam tão satisfeitos quanto
estão hoje, as empresas reduziriam a zero os seus custos nesse item e o Erário
gastaria metade do que está gastando no momento. Que tal?
Não
existe nada de parecido em país algum deste mundo, ou de qualquer outro mundo.
Como seria possível, numa sociedade racional, consumir duas unidades para
produzir uma — e achar que está tudo bem? O sistema ao qual se dá o nome de
“Justiça do Trabalho” continua sendo uma das mais espetaculares extravagâncias
do Brasil — e mais uma demonstração concreta, entre talvez uma centena de
outras, da facilidade extrema de conviver com o absurdo que existe na sociedade
brasileira. É o que nos faz aceitar resultados exatamente opostos ao que se
deseja — estamos nos tornando especialistas, ao que parece, em agir de forma a
obter o contrário daquilo que pretendemos. Todos querem, naturalmente, que a
Justiça do Trabalho produza justiça para os trabalhadores. Mas fazem tudo, ou
aceitam tudo, para gerar o máximo de injustiça, na vida real, para esses
mesmíssimos trabalhadores. Que justiça existe em gastar 17 bilhões de reais de
dinheiro público — que não é “do governo”, mas de todos os brasileiros que
pagam imposto — para gerar 8 bilhões? É obvio que alguma coisa deu
monstruosamente errado aí. A intenção era fazer o bem; está sendo feito o mal
em estado puro.
A
Justiça trabalhista é acessível a apenas 40%
da população; os outros 60% não têm
contrato de trabalho. Ela não cria um único emprego — ao contrário, encarece de
tal forma o emprego que se tornou hoje a principal causa de desestímulo para
contratar alguém. Não cria salários, nem aumentos, nem promoções. Apenas tira
do público o dobro do que dá. Mas vá alguém querer mexer nisso, ou propor que
se pense em alguma reforma modestíssima — será imediatamente acusado de querer
suprimir “direitos dos trabalhadores”. Hoje a Justiça trabalhista gasta 90% do orçamento com os salários de
seus 3 500
juízes, mais os desembargadores de suas 24
regiões, mais os ministros do seu “Tribunal Superior do Trabalho”, mais os
carros com chofer. Em nome do progresso social, porém, fica tudo como está.
José Roberto Guzzo é do Conselho Editoral da Abril e colunista das revistas EXAME e VEJA |
Tudo
isso, claro, é apenas uma parte da desordem que transforma a Justiça brasileira
numa imensa piada fiscal. Com a mesma indiferença, aceita-se que o Supremo
Tribunal Federal, com onze
ministros, tenha 3 000 funcionários — cerca
de 300, isso mesmo, para cada
ministro. Mas não é suficiente: o brasileiro tem de pagar também 1 bilhão de reais por ano para ser
assistido por um “Tribunal da Cidadania”, de utilidade desconhecida — o
Superior Tribunal de Justiça, esse já com 33
ministros, quase 5 000 funcionários,
incluindo os terceirizados e estagiários, e capaz de consumir dois terços inteiros do seu orçamento
com a folha de pessoal. Tempos atrás, o historiador Marco Antonio Villa trouxe
a público o deslize para a demência de um órgão público que foi capaz de
consumir 25 milhões de reais, num
ano, em alimentação para funcionários, pagar de 400 000 a 600 000
reais de remuneração mensal a seus ministros aposentados e ter
na folha de pagamento repórteres fotográficos, auxiliares de educação infantil
e até “jauzeiros”. O que seria um “jauzeiro”? Vale realmente tudo, nesse STJ.
Você
pode querer que nenhuma mudança seja feita nisso aí. Também pode achar que esse
sistema, tal como está, é uma conquista social. Só não pode querer que um
negócio desses funcione.
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