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O ABISMO OLHA PARA NÓS
Nossa fragilidade já havia se traduzido na cusparada
de Jean Wyllys e nos episódios de agressões verbais.
Agora com Eduardo Cunha demos um passo a mais:
a violência física
Por Sônia Zaghetto
Blog do Augusto Nunes
Em 14/10/2016 às 18:06
“Quem enfrenta monstros deve permanecer atento para não se tornar
também um monstro. Se olhares demasiado tempo dentro de um abismo, o abismo
acabará por olhar dentro de ti”. A frase de Nietzsche me vem à memória no exato
instante em que leio sobre a agressão a Eduardo Cunha no aeroporto Santos
Dumont.
É certo que estamos indignados pelos crimes deslavados, pela punição
que parece tardar e pela sensação de que a justiça é mais leve para os que se
aboletam nas castas superiores. A sucessiva onda de escândalos tem seu peso.
Compreensível que tenhamos pressa. Queremos justiça. E queremos agora.
Há monstros ─ monstros a mancheias. E temos nos detido longamente a
contemplá-los. Acompanhamos seus movimentos, observando as manobras que nos
revoltam, as ofensas ao país e as traições à confiança depositada nos homens
públicos. O problema é que, ao seguir atentamente a ação dos inimigos da
pátria, lentamente começamos a pagar o tributo ao abismo.
Aprendemos não só a odiá-los, mas, sem nos dar conta, passamos a
lhes imitar alguns gestos de baixeza. Já não nos basta a justiça. Desejamos
também vingança e bofetada. É catártico.
Quase imperceptivelmente cedemos ao descontrole emocional, às
palavras duras e à santa ira. Nem nos demos conta de que o ódio não é cultivado
sem consequências. Ele contamina o cotidiano e se revela na irascibilidade
onipresente, na impaciência generalizada e na exasperação com que dizemos que o
Brasil já não tem jeito.
O perigo destas é que são práticas viciantes que não se limitam a
episódios isolados. O ódio é insaciável e tem lá sua sedução.
Nossa fragilidade perante o abismo já havia se traduzido na
cusparada de Jean Wyllys e nos recorrentes episódios de agressões verbais em
restaurantes e hospitais. Agora com Eduardo Cunha demos um passo a mais: a
violência física. Cá estamos nós copiando monstros.
O que há de mais terrível nisso tudo não é o mal que os monstros nos
fazem fisicamente, mas os danos que infligem às almas. Pior que as astronômicas
quantias roubadas e o escárnio dos que se julgam intocáveis é nos darmos conta
que também nos foram subtraídos os traços de civilidade. Enquanto criticamos o
discurso de ódio e as manipulações que seduzem incautos, igualmente nos
convertemos em lobos, escravos dos impulsos, órfãos de virtude e envergonhados
de nós mesmos.
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Lamentáveis são os desvios de dinheiro público, mas pior que eles
são a perda da ética e do limite que nos faz aguardar pela justiça em vez de
mergulhar as mãos no sangue alheio.
Além de ofendidos, corremos o risco de nos tornar marionetes do
ofensor, cuja presença nos desatina. Ou seja, rouba o dinheiro e leva a alma
como bônus.
A História nos lembra outras vítimas do abismo. Não foram poucos os
que, desatentos, cruzaram a tênue linha que separa o indignado do bárbaro. O
terror na Revolução Francesa, o assassinato das crianças Romanov, as
humilhações públicas na China de Mao são demonstrações cabais do descontrole.
Basta a primeira pedra e rolam pelo chão séculos de aprimoramento social e
racionalidade.
Os antigos gregos tinham uma palavra para designar a desmedida do
gesto, o momento em que o pé ultrapassa a linha que demarca o razoável: hübris.
Ela também marca este nosso tempo e tem efeito semelhante ao do álcool:
intoxica os espíritos, obnubilando o senso.
A hübris é filha dileta do desprezo às leis. Marcada pela violenta
paixão e pelo descontrole, não raro era duramente punida pelos deuses
justamente porque avançava sobre o espaço alheio. Os modernos deuses da justiça
também a isso punem – convém não esquecer.
O antídoto grego para a hübris? Sofrosine, a moderação e o
autocontrole. Sob seu domínio, a discussão política, a natural indignação e o
desejo de justiça vicejam sem que nos convertamos em desequilibrados caricatos.
Hoje o abismo olhou de volta. E viu quando rimos de Eduardo Cunha
sendo espancado pela mulher que era açulada por outros.
A barbárie espreita. Urge escapar às suas fúrias.
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