ARTE: RICARDO CAMMAROTA/FOLHAPRESS |
GENTE “CULT” TENDE A SER CHATA
E AFETADA EM SUAS OPINIÕES
POR LUIZ FELIPE PONDÉ
UOL/FOLHA DE S. PAULO
31/10/2016 – 02h00
O mundo pós-moderno em que vivemos é um prato cheio para frescuras.
A palavra "frescura" pode soar um pouco estranha para quem não possui
um repertório um pouco mais sofisticado em filosofia. Se isso acontece com
"frescura", quanto mais com a palavra "desconstruído", que
tem em sua história gente chiquérrima, como o filósofo francês Jacques Derrida
(1930-2004). Quanto a "pós-moderno", então, nem me fale. Nada é mais
chique do que algo ser pós-moderno. Voltaremos já ao que seria "pós-moderno".
Vamos por partes. Dizer que algo é uma "frescura" implica
dizer que ela tem um frescor que lhe é peculiar, um certo tom de
"novo", "avantgardiste", diria alguém versado em teoria da
arte moderna. Portanto, sua raiz está no âmbito da natureza e da arte, ao mesmo
tempo! Talvez, lá atrás, encontremos algum fenômeno a ver com mudança de
estação do ano. Tal conceito também afeta qualquer teoria da moda.
Um detalhe: "frescura" sempre carrega alguma nuance de
afetação. Quando algo ou alguém é "fresco", quer dizer que ele ou ela
é um tanto exagerado (afetado) nas suas ações. Os mais velhos diriam: uma nota
acima do necessário.
Na sua evolução semântica ("evolução semântica" quer dizer
mudança de significado de uma palavra ao longo do tempo), a palavra
"frescura" acabou assumindo um sentido próximo a "wannabe".
O que quer dizer isso? Simples: "(to) want to be", em inglês,
significa "querer ser algo", "wannabe" significa
"querer ser algo chique que não se é de verdade". Tipo gente que
queria ser culta e por isso frequenta lugares "cult" para todo mundo
pensar que é culta. Sacou? Conhece alguém assim? Aposto que sim. Gente
"cult" tende a ser chata e afetada em suas opiniões.
E "descontruída"? Essa tem a ver com nossa época
pós-moderna. Filósofos franceses chiques do final do século 20 se puseram a
dizer (Jean-François Lyotard entre eles) que nossa época havia se cansado de
"grandes narrativas". Em língua dos mortais, isso quer dizer ficar de
saco cheio de muita teoria complicada e que é preciso ler muito para entender
e, por isso mesmo, gastar o cérebro demais. Para os pós-modernos tudo é
relativo e Shakespeare é igual a alguém batendo tambor repetidas vezes em algum
recanto perdido do mundo.
PONDÉ (FOTO ARQUIVO GOOGLE) |
Os pós-modernos começam então a misturar coisas que normalmente não
iriam juntas, como bolsa Prada com pijamas no Iguatemi, paletós caros com
sandálias Havaianas no Copacabana Palace e, assim, desconstruir tudo o que foi
tomado como evidência antes deles. Daí chegamos a "frescuras
desconstruídas" de nossa conversa de hoje.
Uma coisa que se adora desconstruir hoje em dia é a comida. Quando
todo mundo acha que pode fazer comida gourmet, é melhor você se ater à comida
da sua avó. Vou dar um exemplo real que me foi contado por uma amiga,
recentemente. Olha só que primor de frescura (comida fresca que quer parecer
inteligente e chique).
Um restaurante "top" na França. Num dado momento, é
servido a ela uma "espuminha" com uma coisa escura e dura no meio do
prato, completamente indecifrável. Mulher educada e com trânsito no mundo
sofisticado, fica perplexa diante da dificuldade de identificar tamanha
"desconstrução" do que seria muito banal, como carne, peixe, salada
ou algo semelhante. Na sua modéstia típica de quem é de fato elegante, pergunta
para o inteligente chef o que viria a ser aquilo.
Surpresa! Você não imaginaria a resposta, assumindo que você não
seja uma dessas pessoas frescas que acham que comida deve ser inteligente.
A revelação máxima: a coisa escura era uma pedra. Pedra com
espuminha. A desconstrução máxima do que seria comida: uma pedra. Nenhum animal
come pedra. Mas humanos desconstruídos, sim. Hoje em dia está na moda fazer
espuminha de tudo na comida. De todas as cores: vermelho, amarelo, azul, verde,
marrom...
A ideia dessa comida desconstruída é que você chupe a pedra molhando
ela na espuminha até secar o prato e a pedra. Alguém poderia se perguntar qual
o limite da desconstrução gourmet. Que tal baratas africanas com espuminha de
fezes seca?
Luiz
Felipe Pondé (1959, Recife) – filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em
epistemologia pela Universidade de Tel Aviv – discute temas como comportamento,
religião, ciência. É colunista da Folha de S. Paulo
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