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ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE
Dizem
os tratadores de almas e mentes que, para viver em paz consigo mesmo, o sujeito
tem que se aceitar como ele é. Viver em paz é uma coisa. Ser feliz é outra –
coisa que só a turma da Xuxa, salvo engano, consegue ser. Aceitar-se exige
paciência e dinheiro. Passar metade da vida estirado no divã a confessar o
inconfessável é empreitada para valentes. Não precisei dos préstimos de
analistas. Passei a me aceitar melhor por absoluta falta de opção. Aos poucos,
por desastrado completo, fui sendo impedido de fazer tarefas para as quais
jamais tive aptidão e saco. O problema é que, no início, me sentia humilhado.
Afinal, era o homem da casa – e, como se sabe, homem da casa não escolhe nem recusa
tarefa.
Sempre
tive grandes dificuldades para, por exemplo, trocar aquela pecinha de torneira
– cujo nome agora me escapa. A falta de coordenação motora, que muitos atribuem
ao fato de não ter cursado o jardim da infância e o pré, me atrapalhou um bocado,
a ponto de me impedir de unir as pontas de dois fios e passar a fita isolante
na maldita emenda. Trocar lâmpada nunca foi problema. O problema continua sendo
subir os degraus. A altura e eu não nos entendemos desde sempre. Escalo um
degrau, dois degraus e, no terceiro, já fico mais tonto que o habitual. Nunca
me recusei a trocar pneu de carro, claro. Desde que tenha alguém para me
colocar os parafusos nas porcas, que insistem em brincar comigo de
esconde-esconde.
A
lista de minhas impossibilidades é vasta.
No
começo, me sentia inferior a outros homens do lar. Ficava amuado quando me
comparava aos que consertam fechaduras, põem óleo nas janelas engripadas,
trocam o botijão de gás, aparam grama, pintam o portão da garagem etc. Nunca
soube fazer nada disso. Mas hoje vejo que minhas inutilidades não são de todo
inúteis. Dou de ombros às gozações, e me estiro no sofá. Já não quero saber
para o que sirvo. Essa preocupação passou a ser de minha mulher:
--
Não te largo, sem descobrir sua utilidade, diz.
Nosso
casamento vai longe. (Orlando
Silveira - 2012)
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