Ricardo Cammarota/Editoria de Arte/Folhapress |
O
MUNDO MODERNO ESTÁ A PONTO
DE
PROVAR QUE O “BEM” É IDIOTA
Os
calvinistas eram gente de fibra, criaram os Estados Unidos.
O
mundo que legaremos para o futuro será um misto
de
praça de alimentação de shopping
e
gente tosca pedindo coisas de graça
Por
Luiz Felipe Pondé
UOL –
22/08/2016 – 02h00
"Você
quer comer manteiga? Você quer um vestido bonito? Você quer viver
deliciosamente? Você quer conhecer o mundo?"
O
que vocês acham dessas propostas como forma de sedução, meninas?
Quem
viu o excelente filme "A
Bruxa", de Robert Eggers, sabe do que estou falando. O filme é um show
do gênero terror para quem gosta de terror sofisticado e não desse lixo
previsível que anda por aí, do qual até o Demônio (sim, com letra maiúscula)
fica envergonhado.
A
própria imagem da boca da jovem Tomasin (personagem principal do filme) melada
de manteiga já pode nos dar a dimensão da consistência do Demônio neste filme:
o que você colocaria na boca lambuzada de manteiga da jovem Tomasin? E a
pergunta essencial: o que ela pediria para você colocar na boca lambuzada de
manteiga dela?
Antes,
um reparo: que nenhum inteligentinho imagine que estou "demonizando o
sexo", tá? Normalmente inteligentinhos não entendem nada de sexo, e muito
menos de mulher. Porque são "do bem".
Sim,
Nelson Rodrigues dizia que teríamos saudade do canalha honesto um dia, eu digo
que já estamos com saudade do Demônio honesto hoje em dia. O Demônio do filme "A Bruxa" é um Demônio
honesto. Já explico por quê.
Conheço
alguns satanistas por força do meu trabalho com pesquisa em religião. Todos que
conheço são quase veganos. O máximo que pregam é o "combate" à Igreja
Católica (coisa que qualquer criança no jardim da infância aprende nos últimos
cem anos). Nem sabem o que foi o calvinismo (denominação protestante do filme).
Os calvinistas eram gente de fibra, criaram os Estados Unidos. O mundo que
legaremos para o futuro será um misto de praça de alimentação de shopping e
gente tosca pedindo coisas de graça.
Nada
como medir forças com o pecado e o Demônio (do tipo do filme) para criar
músculos. Um Demônio honesto merece uma missa.
Os
satanistas de hoje estão preocupados com o aquecimento global. Nada entendem do
que um satanista decente entenderia. Você está se perguntando sobre o que um
satanista decente entenderia? Preste atenção. Mas deixe de lado qualquer
presunção de bondade que você tenha sobre si mesmo. Você quer mesmo conhecer o
mundo?
“Outro
dia, numa conversa, confessei que se fosse me dada apenas a possibilidade de
ser um autor de livros de autoajuda, um palestrante motivacional ou um
assassino profissional, eu escolheria esta última opção, por ser a mais sincera”
Essas
perguntas que abrem essa coluna são feitas pelo Demônio à jovem Tomasin na
sequencia final do filme "A Bruxa". Ele pede a ela que assine seu
livro (significando o pacto com ele), ao que ela responde, prontamente: "O
que você tem para me oferecer em troca?". Aí, ele faz essas perguntas para
ela. O que ele tem a oferecer para ela em troca é manteiga, beleza, delícia e o
mundo inteiro.
Não
vou contar mais nada. A pergunta dela para o Demônio indica que estamos diante
de uma mulher sincera e de verdade.
INTERNET: PONDÉ |
O
filme é construído a partir de textos do século 16. Textos de tribunais
calvinistas (puritanos ingleses) em que manifestações do Demônio eram
descritas. Almas superficiais veriam nisso apenas "patriarcalismo",
"repressão", "abuso religioso", ou seja, tudo o que
inteligentinhos veem em toda parte por conta de sua crassa pobreza de espírito.
A
verdade é que o Demônio no filme é um especialista em natureza humana (sei que
inteligentinhos ficam nervosos com essa termo, "natureza humana", mas
quem liga para eles?). O Diabo é um humanista. Sempre foi. No filme, ele está
preocupado em fazer Tomasin gozar. E o gozo, como bem sabia a psicanálise (não
sabe mais), é "coisa de mulher que conversa com Deus e o Diabo".
A
honestidade do Demônio está no fato dele saber que um pacto com ele significa o
vício no gozo. E quem é viciado no gozo sabe que não há muita saída. Uma vez
dentro da sua beleza e sua delícia ("Você quer um vestido bonito? Você
quer uma vida deliciosa?"), fazemos qualquer negócio para permanecer
gozando. Até morrer de gozar.
Outro
dia, numa conversa, confessei que se fosse me dada apenas a possibilidade de
ser um autor de livros de autoajuda, um palestrante motivacional ou um
assassino profissional, eu escolheria esta última opção, por ser a mais
sincera.
O
mundo contemporâneo está a ponto de provar o que o Demônio nunca conseguiu
fazê-lo: que o "bem" é idiota.
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