Neil Ferreira (Foto: Divulgação) |
UM
COMETA NO ABISMO DO COSMOS
Neil
Ferreira nos priva de um convívio inteligente
e
feliz, mas fica seu brilho que ilumina
Por
José Nêumanne
Blog
do Augusto Nunes
09/11/2017
– 07h02
Neil
Ferreira era um gênio. Ninguém precisa ser um redator de escol nem um
publicitário de primeira linha para ter autoridade suficiente para fazer uma
sentença tão exagerada e tão decisiva quanto esta. Bastava ser um cidadão
comum, um Zé Mané qualquer, um humilde, mas imodesto filho de Deus, como o
autor destas linhas de despedida e elogios, para saber que essa frase não é
apenas definidora, mas também definitiva. O que dizer do redator premiadíssimo
no Brasil e no exterior por seus textos originais, simples e elegantes? Talvez
o máximo de sua obra seja o leão que nas suas mãos virou símbolo do Imposto de
Renda. Há no rei dos animais uma identificação com a atividade que desde então
ele passou a simbolizar que o cliente – no caso, a Receita Federal, o governo
da República, o conjunto de todos os agentes fiscais do Brasil – talvez nem
tenha percebido: era típico de Neil esconder a ironia e até o deboche no
alarido do óbvio. O felino-mor é majestoso e poderoso e também o rei dos
predadores. E o que há de mais predador para o cidadão e consumidor brasileiro
do que o bafo do fisco na sua nuca? Essa é a marca do gênio: o leão do Imposto
de Renda equivale como ideia perfeita ao garoto da Bombril, criado por seu
discípulo Washington Olivetto. Mas o supera numa distinção que consagra a
marca. Virou a Brahma que define a cerveja, mesmo a produzida pelo competidor,
como no causo de Vicente Matheus agradecendo as Brahmas que a Antarctica lhe
teria mandado. Ou o Gillette que deixou de ser um cidadão impresso na embalagem
da lâmina de barbear para virar a gilete, substantivo comum feminino dos
dicionários. Nem São Lucas, o publicano que se fez evangelista, conseguiu
superar a fera no imaginário de todos quantos penam sob as garras dos
implacáveis cobradores de deveres fiscais.
Leão do IR, criação de Neil (Imagem: Divulgação) |
A
diferença do criador do símbolo do soberano da selva que assusta todo
brasileiro pagador em dia de suas obrigações é que Neil Ferreira era gente.
Esta pode parecer uma obviedade mais ululante do que todas as outras que mestre
Nélson Rodrigues, redator de sua predileção, imaginou ou descreveu. Mas não é:
Neil não era gente apenas por pertencer ao reino animal e ser um mamífero
dotado de capacidade de raciocínio e livre-arbítrio. Era gente no sentido mais
comum que existe. Ele era simples, não apenas no sentido de um cara célebre que
se destacou dos outros pelo enorme talento individual, mas tratava seus
dessemelhantes como se fossem não apenas semelhantes, mas iguais. A
simplicidade nele não era hábito comezinho, mas dever de casa permanente. E
quando isso se juntava à capacidade de criar, a coisa ganhava uma dimensão que
não podia ser comparada com nada. Ou seja, o redator que fazia dupla com o
diretor de arte José Zaragoza na badaladíssima DPZ, o mais fulgurante think tank da propaganda brasileira no
auge da época em que ainda havia publicidade não apenas como negócio, mas
também como arte, empenhava a modéstia como forma muito eficaz de comunicação.
Assim, alcançava o panteão de desejos e ambições do homem comum pelo simples
fato de ser um deles.
Baixinho da Kaiser, criação de Neil (Foto: Divulgação) |
Neil
era um brasileiro indignado, que não contemporizava com nada que ofendesse o
rigoroso campo ético no qual atuou a vida inteira como missão máxima. Seu
talento inato de vender produtos e ideias com palavras e imagens, uma
modalidade estética, se submetia e se completava com o rigor de uma cidadania
comprometida com a ética, que não admitia deslizes nem variações. Seu ramo é o
negócio de dourar pílula? Neil era inimigo dos placebos e preferia oferecer
ouro em pó a seus parceiros, clientes e patrões no trabalho. Punha ao dispor
deles um brilho que não ofuscava, mas servia para fazer enxergar melhor tudo o
que estivesse ao redor. Agora que não haverá mais oportunidade de ouvir suas
ideias do bem nem o papo salpicado de graça e picardia, todos os que convivemos
com ele teremos de nos contentar com as lembranças do charme da simplicidade
que nos legou num convívio que ele nunca se cansou de tornar cada vez mais
profícuo. Ele foi, mas fica. Como um cometa que mergulhou no abismo do cosmos,
mas deixou seu brilho em nossas retinas escancaradas.
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