Fotografia não é biografia: é parte dela. Um homem sempre é muito mais – ou muito menos – que um retrato (OS) Foto: Arquivo Google |
“COISA DE
PRETO”
Por José
Paulo Cavalcanti
Jornal da
Besta Fubana
16/11/2017
Arun Gandhi,
neto do Mahatma (Mohandas Karamchand) Gandhi, conta em seu livro “O Dom da Ira” (ainda não publicado no
Brasil) que na África do Sul, durante uma tempestade, ficaram encharcados todos
que estavam no último vagão de um trem – destinado aos de sua cor. Decidiram ir
ao dos brancos, para se proteger da chuva. E de lá foram expulsos pelo
maquinista. Um homem preto. Cumpria seu trabalho, é certo. Mas o preconceito,
naquele tempo, estava entranhando em todas as almas.
Hoje, por
sobre uma consciência mais difusa dos males desse preconceito, há também o peso
das novas mídias. Sem qualquer controle. Avassaladoras. Brutais. E, com elas,
tudo muda. Em todo lugar. Nos Estados Unidos, por exemplo, se alguém se referir
a outro como nigro (em vez de black), está perdido. Em palavras de Fernando
Pessoa (“Lusitâna, Europa e Orpheu”), a hora da raça chegou, enfim.
Meu velho
pai dizia sempre que para construir um muro, são necessários 30 anos. Tijolo
por tijolo, um por ano. Para derrubar, só um segundo. Não se referia, claro, a
muros reais. Feitos com tijolos e cimento. Mas às reputações. Todo esforço de
construir vidas retas se perde em um silêncio, um gesto, uma frase. Tinha toda
razão. Como sentiu agora na própria pele, e da pior forma, o jornalista William
Waack. Ao dizer baixinho, no intervalo de uma entrevista: “Não vou nem falar
porque eu sei quem é. É preto. É coisa de preto.”
De um ponto
de vista conceitual, esse linchamento moral que sofre não faz nenhum sentido.
Porque principal liberdade, pilar de todas as outras, é a da consciência. Só
homens conscientes podem se considerar verdadeiramente livres. O que tem duas
consequências. Uma retrospectiva, que é não se poder aceitar censura. Outra
prospectiva, que é o direito de podermos dizer o que quisermos. Até barbaridades.
Como aquelas palavras do jornalista. Fora disso, não há sentido em ser livre.
De que nos adiantaria?, se ficarmos presos a convenções. Entre elas, a praga do
politicamente correto.
Problema,
senhores, é que somos todos imperfeitos. Quantos de nós podem se gabar de não
haver cometido algum deslize?, nesta vasta e insensata vida. Quantos não
atravessaram nunca um sinal vermelho. Ou não deram bola a guardas de trânsito.
Ou não omitiram algum dinheiro, ao declarar o Imposto de Renda. Ou falaram palavras
erradas. Sem contar pecados piores. Sobretudo, não há proporção nessas
condenações. Fico só num caso. Para lembrar o número grandioso de políticos que
se apropriam de recursos públicos, para fins partidários ou pessoais. Muitos
deles são réus. Outros já estão condenados. Por corrupção. E têm a petulância
de se considerar perseguidos políticos. Pior mesmo é haver os que acreditam
nisto, só mesmo rindo. Em uma espécie de sagração do lema deletério de Ademar
de Barros, “rouba, mas faz.” Isso perdoam. Roubar, tudo bem. Mas frase dita
brincando, por pessoa que não rouba, é algo imperdoável. Difícil entender.
Voltando ao
neto de Gandhi, ele também diz que seu avô não nasceu santo. Nasceu uma pessoa
comum. Era um ladrão, roubava dinheiro, mentia aos pais. Tinha todas as
fraquezas que nós temos. Só depois compreendeu a grandeza das virtudes. E se
transformou. Em resumo, assim penso, não é justo julgar (e condenar) Gandhi, ou
Waack, ou qualquer indeterminado cidadão por suas fraquezas. O homem deve ser
entendido no seu conjunto. E na sua trajetória. Somos seres feitos de equívocos
e virtudes. Sanchos e Quixotes. Barros e estrelas. E merecemos ser julgados,
por quem está do nosso lado, considerando tudo isso. Nas democracias é assim.
Deveria ser.
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