IMAGEM: REPRODUÇÃO |
DIREITA E ESQUERDA
Se a prova do pudim está em comê-lo, a esquerda não mudou
a receita e governou seguindo as mesmas práticas sociais
que dominam o campo da política
Por Roberto DaMatta
O Globo – 22/11/2017
A crise é deflagrada por um impeachment e pela descoberta da
corrupção num governo de esquerda. O fato marcante é o assalto aos bens
públicos fora dos polos canônicos — esquerda e direita. Não há como ignorar
como a desonestidade desmanchou a solidez das polaridades políticas.
Enquanto a esquerda foi um lugar na topografia política inaugurada
com a Revolução Francesa, como mostrou J. A. Laponce num livro notável, não
havia novidade. Mas quando ela chega ao poder, cabe discutir como e onde sua
moralidade fica semelhante à de uma cavernária direita.
Um governo de esquerda decepciona justamente por sua semelhança com
a direita no que tange à ineficiência pública e à corrupção. Se a prova do
pudim está em comê-lo, a esquerda não mudou a receita e governou seguindo as
mesmas práticas sociais que dominam o campo da política — um campo dinamizado
mais pelos relacionamentos e favores pessoais do que por princípios
ideológicos.
_________
Antigamente, a “direita” significava manter o status quo que a “esquerda” queria mudar. Minha geração tinha como
ideal reduzir a distância entre os poucos com muito e a multidão empobrecida.
Até meu reacionário e alienado pai entendia isso, embora ponderasse que
relativizar a propriedade seria promover o terremoto que derrubaria tanto o
sistema quanto a nossa casa.
Era correto, entretanto, entender a história nesta chave, desde que
a esquerda não desempenhasse o papel da direita. A troca de lugar — esse
movimento democrático — foi um avanço, pois democratizou também a esquerda. Ela
deixou a lista negra e passou a fazer suas listas negras. No governo, foi
obrigada a abandonar o “quanto pior, melhor” e exibiu poderosos e fracos no seu
próprio espaço. Perdeu a inocência.
_________
Até onde a dualidade entre esquerda e direita disfarça hierarquias?
Num ensaio famoso e em outro contexto, Lévi-Strauss questiona se as
organizações dualistas existem — ou seriam um modo de esconder hierarquias. Tal
ocorreu quando a França revolucionária acabou com aristocracia, clero e povo e
reduziu tudo a uma dualidade. Quem era contra o rei ficava à esquerda; os que o
sustentavam, à direta.
É prático, como sugere Laponce, reduzir o complexo campo da política
à polaridade das mãos. Afinal, vive-se sem uma das mãos — como revelam os
despotismos de direita e de esquerda —, mas não se caminha sem os pés ou sem a
cabeça. A polaridade entre esquerda e direita integra diferenças porque suprime
relações e estabelece, como mostrou Hertz, o destaque da mão direita. Mas, como
ensina Dumont, não podemos esquecer que as mãos, distintas num juramento,
juntam-se numa prece. São interdependentes.
Roberto DaMatta é antropólogo FOTO: Arquivo Google |
Minha geração viu realizado o sonho de ter a esquerda no poder e
observou, desencantada, como as peculiaridades do Estado à brasileira —
associado a práticas sociais como o familismo e o favor — a transformaram em
direita. Nela, vimos também surgir uma selvagem corrupção. Um hóspede sempre
convidado do poder nacional, mas lamentavelmente escancarado pela esquerda.
__________
Temo que, fora do poder, esquerda e direita se diferenciem, mas tal
não ocorre quando elas se mudam para o palácio. Nele, o eleito tem que lidar
com a matriz hierárquica nacional com seu atávico e engenhoso legalismo, o qual
lhe assegura uma capacidade de mando maior do que esperava. Tal matriz tem
feito milagres no Brasil. Se ela foi capaz de ordenar eleição com escravismo,
por que não seria igualmente competente para conciliar austeridade socialista
com riqueza capitalista? Além disso, o palácio tem suas portas abertas aos
movimentos populares e aos projetos milionários. Governar, logo se descobre, é
criar elos e fazer amizades cruzadas. Não é, pois, sem espanto que descobrimos
como o político atua por meio de um espesso tecido de favores pessoais,
amparado por um igualmente denso e arcaico legalismo de cunho teológico
destinado a criar e manter privilégios.
Resumo da ópera: além da luta de classes, temos que nos haver com o
combate entre o bom senso e um arraigado fetichismo legal. Com ele, mascaramos
crimes e garantimos impunidade. Hoje, fica muito claro que eleições livres e
competitivas não consagram apenas representantes do povo, mas também fazem com
que os eleitos pelo povo entrem numa casta — fiquem além da lei. Quem deveria
dar o exemplo de cidadania é tentado a virar mestre de mistificação e
oportunismo. E aqui, caros leitores, as mãos lamentavelmente se unem e igualam
embolsando dinheiros...
Nenhum comentário:
Postar um comentário