ARTE: ZERO HORA |
A CRISE É DO SISTEMA
O impeachment de Dilma Rousseff não encerrou a crise política.
Apenas abriu o processo que estamos vivendo
POR MARCO ANTONIO VILLA
PUBLICADO EM “O GLOBO”
13/12/2016
A cada dia fica mais patente que precisamos proclamar urgentemente a
República. O ano de 1889 foi apenas o anúncio. O grito do marechal Deodoro da
Fonseca ficou parado no ar. O simulacro de República conduziu o Brasil à mais
grave e profunda crise política da nossa história. Como de hábito, em momentos
como o que estamos vivendo, o tempo histórico corre rapidamente. A conjuntura
política está absolutamente imprevisível. Tudo pode acontecer.
Sem uma ação decisiva (e rápida) dos principais atores políticos, poderemos
chegar muito próximos à convulsão social. Não é exagero, é mera constatação. O
impeachment de Dilma Rousseff não encerrou a crise política. Apenas abriu o
processo que estamos vivendo. Muitos, ingenuamente, imaginaram que o espírito
de 1992 — quando do processo de impeachment de Fernando Collor — estava se
repetindo em 2016.
Não compreenderam que as contradições estão de tal forma acirradas
que uma mera substituição de presidente não altera, por si só, o panorama
político. Isso não significa diminuir a importância da derrota do projeto
criminoso de poder. Não custa imaginar se Dilma ainda estivesse na Presidência
em meio ao agravamento da crise econômica, que foi produzida por ela. Pior
ainda, se, ao mesmo tempo, Lula ocupasse a Casa Civil. O que seria do Brasil?
A questão é que o bloco que ascendeu ao poder não entendeu que o
impeachment foi produto da maior mobilização da sociedade civil da nossa
História, e não do Parlamento. Supôs que o desejo das ruas fosse a mera
substituição dos ocupantes das cadeiras da Presidência da República e dos
ministérios. Erro crasso. No que Geddel Vieira Lima difere de Jaques Wagner?
Milhões foram às ruas para isso?
Michel Temer jogou fora a expectativa favorável criada após o
impeachment. Compôs um ministério ruim. Optou pela nomeação de políticos dos
partidos da base, alguns sem qualquer expressão para a área para a qual foram
indicados. Logo o governo deu sinais de paralisia. A maioria dos ministros
permaneceu no anonimato. Pouco fizeram. Não viajaram pelo país. Evitaram
entrevistas.
Deram a impressão que não queriam ficar comprometidos com o governo.
Eram ministros de si próprios, e não do presidente. A inépcia ministerial foi
sentida pelo mercado. Teve reflexo direto sobre a tímida recuperação econômica.
Se em agosto imaginava-se que o PIB cresceria 1,5% em 2017; hoje os mais
otimistas falam em 0,5% e os realistas em zero. E a paralisia econômica agrava
ainda mais a crise política.
“Estabelecer um contato direto com os sentimentos
das ruas é um caminho. É preciso coragem”
Com as primeiras revelações das delações dos executivos e acionistas
da Odebrecht, a crise aumentou. Era esperado. Se o presidente Temer conseguir
comprovar que não teve qualquer participação no esquema criminoso da Odebrecht,
abre a possibilidade de dar um novo gás ao governo. Neste caso, é indispensável
uma profunda reforma ministerial, com a demissão imediata de todos os acusados,
e o compromisso de apoio à Lava-Jato sem qualquer tergiversação.
Poderá até legitimar as propostas de reformas, inclusive a
previdenciária. Contudo, se as acusações atingirem Temer — ou se o presidente não
conseguir convencer a opinião pública da sua inocência —, não é possível prever
até onde irá a crise. Isto porque, diferentemente de outros momentos da nossa
História — como 1930 e 1964 — não estão presentes alternativas reais de poder
para substituir a ordem em declínio.
E o vazio poderá, no limite, ser ocupado por algum ator fora da cena
política tradicional. O agravamento da crise é responsabilidade da elite
política. Não conseguiu entender que o Brasil mudou. Que a sociedade civil está
vigilante. Que é peça de museu o brasileiro bonzinho, desinteressado em
política e aguardando — pacientemente — receber algumas migalhas do banquete
dos poderosos. Mais ainda: a paciência popular está se esgotando.
Não custa imaginar como seria recebida a notícia de um eventual
habeas corpus para Sérgio Cabral. Com o conhecimento do conjunto das delações —
são 77 —, a bola vai para a Justiça. Aí mora mais um problema. Há uma enorme
desconfiança em relação ao funcionamento do Poder Judiciário. E qualquer
tentativa de um grande acordão vai fracassar. Relativizar a crise vai jogar
ainda mais lenha na fogueira.
Cambalacho jurídico — como o da semana passada livrando a cara de
Renan Calheiros — vai receber uma dura resposta da sociedade. Resposta muito
além das redes sociais, resposta nas ruas. É claro que o sistema político deu o
que tinha de dar. Do jeito que está, é um produtor de crises, e não de
governabilidade. As instituições — tão elogiadas pelas Polianas de plantão —
estão carcomidas.
Não atendem aos clamores populares e às necessidades estruturais
para um bom governo. Terão de passar por uma profunda reforma. E reforma dos
Três Poderes. Quem está satisfeito com o Congresso Nacional? E com a
Presidência da República? E o Supremo Tribunal Federal? O dilema que se coloca
é que se a crise é do sistema, a solução a curto prazo não passa pela reforma
ou reestruturação de tudo o que está aí — que é uma tarefa de meses, anos.
VILLA (FOTO: ESTADÃO) |
Dada a gravidade da situação, a intervenção para solucionar a crise
tem de ser efetuada imediatamente. Fica o dilema: o governo Temer chegará até
as eleições de 2018? Impossível dar esta resposta, tal o clima de incerteza. Os
próximos dias serão decisivos. E o papel de Temer será central. Tem de assumir
as rédeas do governo sem tentar acordos com quem for. Espírito conciliatório,
neste momento, é um desserviço ao país.
Estabelecer um contato direto com os sentimentos das ruas é um
caminho. É preciso coragem.
Marco Antonio Villa é historiador
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