Ilustração: arquivo Google |
CAÇA ÀS
BRUXAS
Sou contra botar fogo no
boneco da filósofa gay.
Sou contra dar nota zero a
redações do Enem
Por Ruth de Aquino
Época – 10/11/2017
Quando vi
populares atear fogo a um boneco com o rosto da filósofa americana de 61 anos
Judith Butler em frente ao Sesc Pompeia, em São Paulo, sob gritos de “queima,
bruxa”, senti arrepios de medo pelo que nos espera em 2018. Outro boneco foi
queimado: o do “bruxo” Fernando Henrique Cardoso. Logo ele, FHC, um bruxo sem
magia, que não consegue o milagre de unir o PSDB e frear a vaidade
incontrolável de Aécio Neves.
Um jovem
pisoteava os dois bonecos. Usava um boné virado para trás e um agasalho da Gap.
Ria, filmava com o celular os bruxos no chão com as tripas para fora. Uma
petição on-line com 350 mil assinaturas e deputados da bancada evangélica
pressionaram o Sesc a cancelar o seminário da filósofa, Os fins da democracia.
Uma senhora de batom rosa, óculos rosa e laçarote rosa na cabeça exibia cartaz
com desenhos de menino brincando de boneca e menina brincando de trenzinho:
“Sonho de Judith Butler é destruir a identidade sexual dos seus filhos”.
Judith
Butler era, até a semana passada, uma total desconhecida do pessoal que se
reuniu em frente ao Sesc Pompeia. A maioria absoluta dos brasileiros nunca
ouviu falar da acadêmica. É professora
da Universidade da Califórnia. Nos Estados Unidos, é considerada uma das
filósofas mais importantes. Em 1990, publicou um livro, Problemas de gênero – Feminismo e subversão da identidade. É casada
com uma mulher. Dentro do Sesc, Judith se mostrava surpresa com a reação
indignada, mas minimizava: “Deve haver muitos robôs por trás disso”.
O problema é
que os robôs estão ganhando vida e se assanhando de tal maneira que, em vez de
simplesmente se expressar, transformam seus argumentos em ódio e linchamento. É
nítida a onda conservadora. Contra gays. Contra o direito ao aborto. A favor de
uma população armada. Os manifestantes gritavam “I love you, Trump”. Entoavam
slogans pró-Bolsonaro. Skinheads gritavam palavras de ordem nacionalistas.
Muitos pediam buzinaço a favor do casamento “como Deus o fez”, entre um homem e
uma mulher. O protesto era “contra a depravação de nossa cultura”.
Todas essas
pessoas têm o direito de se manifestar, mas não de tentar censurar uma
palestra, bloquear aulas de história ou fechar uma exposição artística,
simplesmente por achar que “atentam contra a família” e as nossas criancinhas.
A mensagem transmitida pela caça às bruxas dá arrepios de medo. Daqui a pouco,
não poderemos mais pensar, dependendo de quem for eleito presidente. Patrulhas
e populismos de direita e de esquerda me apavoram. A militância cega torna o
mundo mais burro e mais perigoso.
Seguindo o
mesmo raciocínio, sou contra dar nota zero a redações do Enem que “desrespeitem
os direitos humanos”. Coloco entre aspas porque esse julgamento é subjetivo.
Nessa questão, estou com a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo
Tribunal Federal. Como dar a uma junta de professores o poder de anular
redações que eles considerem ofensivas a direitos humanos? É possível, sim, dar
nota zero a uma péssima redação. Mas não sem ao menos considerar sua qualidade
de argumentação. Entraríamos aí no terreno do obscurantismo, da patrulha
política ou religiosa. Do fanatismo. Da censura.
Sou contra
multar Bolsonaro em R$ 150 mil por ter dito que seus filhos tiveram uma “boa
educação”, com um pai presente e, por isso, ele “não corre o risco” de ter um
filho gay. Bolsonaro é homofóbico. Bolsonaro é a favor de tortura. Bolsonaro é
um militarista, a favor de porte de armas para todo cidadão. Bolsonaro é um
perigo concreto de totalitarismo no Brasil, com sua candidatura à Presidência.
Não deveria ser transformado em vítima por dizer o que acha. Os
correligionários do deputado federal do PSC se consideram imbuídos de uma
cruzada pela justiça, tradição, família, moral e bons costumes. Quando vemos
que o ódio, o preconceito e a censura vêm muito do povo, de gente comum,
podemos imaginar o apelo da fala de Bolsonaro. Deveríamos combatê-lo com a
sensatez.
O bom
exemplo da semana é que o Museu de Arte de São Paulo (Masp) decidiu que a
exposição Histórias da sexualidade deixou de ser proibida para menores de 18
anos. Agora, a mostra passa a ter apenas a classificação indicativa, não
proibitiva. Menores de idade poderão ir à exposição do Masp se acompanhados por
seus responsáveis. Esse recuo do museu é respaldado por procuradores dos
direitos do cidadão, que disseram: “Não cabe ao Estado impedir o acesso de
crianças ou adolescentes a eventos tidos como ‘inadequados’ a sua faixa
etária”.
No momento
em que o Estado decidir tudo por nós, como pensamos, o que ouvimos, o que
vemos, o que nossos filhos podem ou devem ver, ler, ouvir, será o fim da
democracia e o começo da ditadura.
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