sábado, 11 de novembro de 2017

CRÔNICA: WALCYR CARRASCO

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UMA HISTÓRIA DO CRACK

Ela descobriu que o filho deixara a escola.
Tinha uma turma de amigos, magra e suja.
Como ele

Por Walcyr Carrasco
Época On-Line
31/10/2017

Foi minha amiga. Era escritora. Não famosa, glamorizada, como pensam que é a vida de todos os escritores. Jovenzinha, publicou um livro de poemas. Mais tarde, contos. Também fazia roteiros para programas de entrevistas. A vida corria, não exatamente de acordo com seus sonhos. Mas tomava cerveja com os amigos. Ria.

Teve amores. Nenhum chegou para ficar. O filho nasceu de uma produção independente. Ficou grávida, comunicou ao rapaz. Ele assumiu, ajudou a pagar a maternidade, registrou o garoto. Dali a alguns anos casou-se com outra. Mudou de estado, e só se viam raramente. Dinheiro, nunca. Ela não se importava. Quis ser mãe. Apesar do salário flutuante, pagava a escola e o curso de inglês. Sonhava com uma obra genial, um livro! Alguns capítulos já no computador. Assim como scripts, argumentos, que tentava vender para produtores de cinema. Também fez, uma ou duas vezes, livros para empresários, como ghost-writer. Ela escrevia, por preço fixo. Eles assinavam e brilhavam.

O menino cresceu. Quando tinha uns 16 anos, ela sentiu uma fumacinha vinda do quarto. Conhecia bem, já havia experimentado mais nova, alguns amigos ainda davam uns tapinhas de fumo. Abriu a conversa. O garoto disse que só queria experimentar. E que todos os seus amigos já usavam maconha, uns mais, outros menos. Aos poucos, ela incluiu o dinheirinho da maconha nos gastos do filho. A vida seguiu. Mas o garoto saía às 7 da noite, voltava às 7 do dia seguinte. Logo ela soube de uma longa relação de festas, baladas com música eletrônica, às quais ele comparecia. Havia a festa noturna. Depois o after de manhã. O pós-after ia pela tarde. Ouviu falar das drogas químicas. As balas. Ecstasy. O filho explicou, não era nada de mais. Só uma balinha para ficar mais vivo. Só nas festas. Ela admitiu. Agora com um certo medo. Passava madrugadas no computador, escrevendo seu romance, esperando o filho chegar. Mas tendo ideias para o romance. Ou trabalhando em pequenos roteiros, institucionais de produtos.

Só que o garoto pedia mais e mais. Um dia, ela descobriu que ele deixara a escola. A particular, paga com tanto custo! Sentiu um cheiro estranho, de queimado, vindo do quarto. As atitudes do filho tornaram-se diferentes. Era mais rápido. Os olhos pareciam maiores. Emagrecia. Tinha uma outra turma de amigos, magra e suja. Como ele. Sempre haviam conversado sobre tudo, mas  o garoto se esquivava. Falou com um amigo, talvez ele pudesse trabalhar numa produtora. Seria uma forma de encaminhá-lo. Mas o filho foi um dia, no outro não. Seu celular desapareceu. Achou que perdera na rua, que cabeça! Procurou uma joia, das poucas que tinha. Sumira. Culpou a faxineira. E o filho pedindo dinheiro, mais e mais. Mas o trabalho escasseava. Cada vez mais ela se dedicava ao romance. O grande romance, que a colocaria junto aos escritores mais importantes. E ele crescia, arquivado em pastas junto com seus trabalhos do dia a dia, scripts, roteiros institucionais, novos projetos de livros para empresários. Quando o filho pediu, mais uma vez, dinheiro, ela já sabia para o que era. Investigara. Não tinha dúvidas. Crack. Recusou-se.

– Se você não me der, vou ser obrigado a roubar.

Ela abriu a bolsa, tirou o pouco que tinha. Dali em diante, ele estendia a mão. Ela arrumava. Melhor que vê-lo na cadeia. Todas as noites, brigavam. Ela gritava. Ele exigia. Soube que passou por um tiroteio. Falou em internação, arrumaria os fundos, falaria com o pai dele, os avós. Ele recusou-se. Iria embora de casa. Ela não queria vê-lo nas ruas. Mas o trabalho diminuiu, eram tempos difíceis no país. Ela tomou emprestado para comer, pagar as contas. A dívida nem era tão alta, quando o filho exigiu mais. E mais. Desta vez, ela não pôde dar.

Na tarde seguinte, foi ver um trabalho. Percebeu que já era considerada velha, com tantos jovens saídos das universidades dispostos a dar o sangue por nada. Voltou exausta, desanimada, sem saber como continuar. Mas quem sabe se terminasse o romance?

Então, chegou em casa. O computador não estava mais lá. Deu um grito. Tudo que criara, todos os seus projetos estavam naquele computador. Ela soube. O filho vendera. Não adiantava gritar, chorar. Olhou para a frente, sem esperança. Seu último sonho fora embora nos arquivos daquele computador. E depois, o que viria?

Desceu, comprou fita-crepe. Vedou as portas da cozinha. A janela. Abriu o gás. Aspirou. Caiu no chão. Finalmente, a libertação.



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