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A NOSSA CORRUPÇÃO DE CADA DIA
Se alguém indica uma empresa, pode estar recebendo
uma comissão por fora. O consumidor vive sobretaxado
Por Walcyr Carrasco
Época On-Line
24/10/2017
Sabe aquela médica supersimpática? Receita um creme manipulado e
diz:
– Faz nessa farmácia aqui. Tenho mais confiança.
Pois bem, ela vai receber 30% pela indicação. É regra. Farmácias de
manipulação enviam aos médicos que assinam a receita a módica percentagem de
30% sobre o valor. É o tipo de comportamento que se tornou regra. Ninguém
contesta. Primeiro: há um conflito de interesses. O médico indica a farmácia
por considerá-la melhor ou pela comissão? Segundo: convenhamos, 30%? Eita
comissão das boas!
Uma das profissões mais ambicionadas é a de comprador em
supermercado ou rede de magazines. Essa pessoa tem na mão uma verba
extraordinária e a possibilidade de fortalecer uma empresa em crescimento.
Basta colocar um produto nas gôndolas de todo o país. Ao oferecer a mercadoria,
o empresário já sabe. Tem de pagar por fora. Tive uma amiga que trabalhava na
área de relógios. Um conhecido seu, de relógios de parede, oferecia todo ano
uma viagem ao exterior, com passagens, hotéis, para a família do comprador de
uma grande rede de supermercados. Outro, um carro. Há os que vão diretamente ao
ponto: dão grana. Mas quem paga? Eu, você, é óbvio. A mercadoria que poderia
ser vendida por um preço custa outro. Comprador enriquece. Ninguém diz que é
propriamente corrupto. Faz parte do jogo.
Em meu livro Em busca de um
sonho, conto uma passagem de minha infância. Minha mãe era proprietária de
um pequeno bazar de interior, em Marília. Às vésperas do Natal, o fiscal
apareceu. Vinha pegar uma boneca para sua neta. Escolheu justamente a maior,
mais cara. Havia apenas duas delas no pequeno bazar de mamãe. Foi um prejuízo
enorme. Resultado. Resolvi que queria ser fiscal quando crescesse. Imagine, uma
profissão em que poderia entrar numa loja, pegar o que desejasse, sem pagar? Ir
a uma padaria e me encher de doces?! A todos eu dizia:
– Quando crescer, quero ser fiscal.
Bem entendido: fiscal corrupto.
Havia um sapateiro, vizinho da loja, ferrenho comunista. Explicou:
devido ao desfalque do fiscal, mamãe não pôde me comprar sapatos novos. Eu, com
os dedos apertados no sapato velho, desisti dessa vocação. Para superar o
prejuízo, mamãe aumentou o preço de alguns brinquedos. Quem pagou? Os
fregueses.
A população vive sobretaxada pela corrupção cotidiana. Já falei
sobre a RT (reserva técnica) dos arquitetos e designers de interiores. Ou seja, a comissão que
lojas de decoração oferecem quando levam os clientes. Quando um desses
profissionais diz que um sofá é mais bonito, pense bem. Há duas possibilidades.
Ele pode oferecer o sofá porque realmente acha mais bonito. Ou porque a loja
paga comissão maior. Se alguém indica uma empresa, até mesmo um amigo, pode
estar levando uma comissão por fora. Existem supostos nomes técnicos para tudo
isso. Uma vez no litoral fui com um amigo visitar um cliente/conhecido dele.
Aproveitando a ocasião, os dois discutiram um negócio. Meu amigo oferecia um
produto de sua empresa – na área química. O outro inquiriu:
– E o meu?
– Trinta por cento.
A simples pergunta “E o meu?” resume tudo. Mas esse acréscimo para
onde vai? Para nossa conta, é uma sobretaxa.
Nas comunidades ocupadas pelas milícias, funciona assim. O morador
só pode comprar gás de quem é indicado. O preço é altíssimo. Idem para vários
produtos. A milícia tem um ganho extra sobre tudo que é comprado dentro da
comunidade. Os moradores das comunidades são, obviamente, os mais necessitados.
Mas são eles que, subjugados pelas milícias, pagam mais para viver. Nós, porém,
somos explorados por milícias espalhadas em todas as áreas do consumo. Estou
revoltado com os políticos? Sim, e com razão. Mas também estou revoltado com
esses gastos que crescem exponencialmente. Às vezes é difícil contratar um
profissional até para uma pequena reforma, porque ele leva extra da loja de
material. Para meu susto, um dia eu estava no Santa Luzia, supermercado de luxo
em São Paulo, e uma cliente, óbvio que fiel, deu um dinheirinho extra ao
açougueiro, na minha frente. Para receber um melhor pedaço de carne. E eu? Fico
com o pior? Sou obrigado a me confrontar com isso até na hora de comprar um
bife?
As grandes empresas deveriam fazer uma limpa. O Conselho de
Arquitetura é contra a RT. Mas quem vigia? A corrupção está vascularizada.
Qualquer produto que você compra já paga impostos enormes. E o extra dos
corruptos que acham normal pegar uma grana para o próprio bolso.
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