terça-feira, 7 de novembro de 2017

CRÔNICA: WALCYR CARRASCO

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A NOSSA CORRUPÇÃO DE CADA DIA

Se alguém indica uma empresa, pode estar recebendo
uma comissão por fora. O consumidor vive sobretaxado

Por Walcyr Carrasco
Época On-Line
24/10/2017

Sabe aquela médica supersimpática? Receita um creme manipulado e diz:

– Faz nessa farmácia aqui. Tenho mais confiança.

Pois bem, ela vai receber 30% pela indicação. É regra. Farmácias de manipulação enviam aos médicos que assinam a receita a módica percentagem de 30% sobre o valor. É o tipo de comportamento que se tornou regra. Ninguém contesta. Primeiro: há um conflito de interesses. O médico indica a farmácia por considerá-la melhor ou pela comissão? Segundo: convenhamos, 30%? Eita comissão das boas!

Uma das profissões mais ambicionadas é a de comprador em supermercado ou rede de magazines. Essa pessoa tem na mão uma verba extraordinária e a possibilidade de fortalecer uma empresa em crescimento. Basta colocar um produto nas gôndolas de todo o país. Ao oferecer a mercadoria, o empresário já sabe. Tem de pagar por fora. Tive uma amiga que trabalhava na área de relógios. Um conhecido seu, de relógios de parede, oferecia todo ano uma viagem ao exterior, com passagens, hotéis, para a família do comprador de uma grande rede de supermercados. Outro, um carro. Há os que vão diretamente ao ponto: dão grana. Mas quem paga? Eu, você, é óbvio. A mercadoria que poderia ser vendida por um preço custa outro. Comprador enriquece. Ninguém diz que é propriamente corrupto. Faz parte do jogo.

Em meu livro Em busca de um sonho, conto uma passagem de minha infância. Minha mãe era proprietária de um pequeno bazar de interior, em Marília. Às vésperas do Natal, o fiscal apareceu. Vinha pegar uma boneca para sua neta. Escolheu justamente a maior, mais cara. Havia apenas duas delas no pequeno bazar de mamãe. Foi um prejuízo enorme. Resultado. Resolvi que queria ser fiscal quando crescesse. Imagine, uma profissão em que poderia entrar numa loja, pegar o que desejasse, sem pagar? Ir a uma padaria e me encher de doces?! A todos eu dizia:

– Quando crescer, quero ser fiscal.

Bem entendido: fiscal corrupto.

Havia um sapateiro, vizinho da loja, ferrenho comunista. Explicou: devido ao desfalque do fiscal, mamãe não pôde me comprar sapatos novos. Eu, com os dedos apertados no sapato velho, desisti dessa vocação. Para superar o prejuízo, mamãe aumentou o preço de alguns brinquedos. Quem pagou? Os fregueses.

A população vive sobretaxada pela corrupção cotidiana. Já falei sobre a RT (reserva técnica) dos arquitetos e designers de interiores. Ou seja, a comissão que lojas de decoração oferecem quando levam os clientes. Quando um desses profissionais diz que um sofá é mais bonito, pense bem. Há duas possibilidades. Ele pode oferecer o sofá porque realmente acha mais bonito. Ou porque a loja paga comissão maior. Se alguém indica uma empresa, até mesmo um amigo, pode estar levando uma comissão por fora. Existem supostos nomes técnicos para tudo isso. Uma vez no litoral fui com um amigo visitar um cliente/conhecido dele. Aproveitando a ocasião, os dois discutiram um negócio. Meu amigo oferecia um produto de sua empresa – na área química. O outro inquiriu:

– E o meu?

– Trinta por cento.

A simples pergunta “E o meu?” resume tudo. Mas esse acréscimo para onde vai? Para nossa conta, é uma sobretaxa.

Nas comunidades ocupadas pelas milícias, funciona assim. O morador só pode comprar gás de quem é indicado. O preço é altíssimo. Idem para vários produtos. A milícia tem um ganho extra sobre tudo que é comprado dentro da comunidade. Os moradores das comunidades são, obviamente, os mais necessitados. Mas são eles que, subjugados pelas milícias, pagam mais para viver. Nós, porém, somos explorados por milícias espalhadas em todas as áreas do consumo. Estou revoltado com os políticos? Sim, e com razão. Mas também estou revoltado com esses gastos que crescem exponencialmente. Às vezes é difícil contratar um profissional até para uma pequena reforma, porque ele leva extra da loja de material. Para meu susto, um dia eu estava no Santa Luzia, supermercado de luxo em São Paulo, e uma cliente, óbvio que fiel, deu um dinheirinho extra ao açougueiro, na minha frente. Para receber um melhor pedaço de carne. E eu? Fico com o pior? Sou obrigado a me confrontar com isso até na hora de comprar um bife?

As grandes empresas deveriam fazer uma limpa. O Conselho de Arquitetura é contra a RT. Mas quem vigia? A corrupção está vascularizada. Qualquer produto que você compra já paga impostos enormes. E o extra dos corruptos que acham normal pegar uma grana para o próprio bolso.

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