Ilustração: arquivo Google |
QUEM ESCREVE
AS BULAS?
Quem
tem úlcera pélvica não pode tomar remédio nenhum.
Está
condenado à morte? Toda bula odeia essa tal de úlcera pélvica.
As
demais úlceras entram como coadjuvantes
Por
Mário Prata
Estadão
– 30/03/1997
Quando me perguntam a profissão e eu digo
que sou escritor, logo vem outra em cima: de quê? De tudo, minha senhora. De
tudo, menos de bula. Romance, cinema, teatro, televisão, poesia, ensaios,
tudo-tudo, menos bula!
Uma vez, num barzinho uma gatinha me
perguntou o que eu escrevia e disse que escrevia bula. Ela não deu a menor
atenção para mim. Se dissesse que era cronista do Estadão talvez tivesse mais sucesso. Por que o preconceito contras
as geniais bulas? Quando é bula papal todo mundo leva a sério, mesmo que seja
para dizer que não se pode fazer amor sem a intenção da procriação (que palavra
mais animal!).
Não que eu não aprecie as bulas. Pelo
contrário. Adoro lê-las. E com atenção. E, sempre, depois de ler uma, já começo
a sentir todas as “reações adversas”.
Admiro, invejo esse colega que escreve
bulas. Fico imaginando a cara dele, como deve ser a sua casa. Que papo tal
escrivão deve levar com a mulher e com os vizinhos?
Tal remédio “é contra-indicado a pacientes
sensíveis às benzodiazepinas e em pacientes portadores de miastenia gravis”. Dá
vontade de telefonar para o autor e perguntar como é que eu vou saber se sou
sensível e portador? Quanto ele ganha por bula? Será que ele leva os obrigatórios
dez por cento de direitos autorais? Merecem, são gênios.
Jamais, numa peça de teatro, num roteiro de
um filme ou mesmo numa simples crônica conseguiria a concisão seguinte: “É
apresentado sob forma de uma solução isotônica (que lindo!) de cloreto de
sódio, que não altera a fisiologia das células da mucosa nasal, em associação
com cloreto de benzalcônio”. Sabe o que é? O velho e inocente Rinosoro.
Vejam o texto seguinte e sintam na narrativa
como o autor é sádico: “Você poderá ter sonolência, fadiga transitória,
sensação de inquietação, aumento de apetite, confusão acompanhada de
desorientação e alucinações, estado de ansiedade, agitação, distúrbios do sono,
mania, hipomania, agressividade, déficit de memória, bocejos,
despersonalização, insônia, pesadelos, agravamento da depressão e concentração
deficiente. Vertigens, delírios, tremores, distúrbios da fala, convulsões e
ataxia”. Pronto, tenho que ir ao dicionário ver o que é ataxia: “Incapacidade
de coordenação dos movimentos musculares voluntários e que pode fazer parte do
quadro clínico de numerosas doenças do sistema nervoso”. Já sentindo tudo
descrito acima.
Quem mandou ler?
E quem tem úlcera pélvica não pode tomar
remédio nenhum. Está condenado à morte? Toda bula odeia essa tal de úlcera pélvica.
As demais úlceras entram como coadjuvantes nos textos dos autores buláticos (tem a palavra no Aurélio).
E as gestantes (é como os buláticos chamam a grávida)? Elas não
podem tomar nenhum remédio. Os nobres coleguinhas protegem a gravidez.
E se você tem “intolerância conhecida aos
derivados pirazolônicos”, te cuida, irmão. Deve dar em gente nascida em Pirassununga
e região.
Para todo remédio uma bula diferente, um
estilo próprio, um jeito de colocar a vírgula diferente.
Tudo isso para dizer que outro dia, na cama,
com a parceira amada, pego uma camisinha na mesinha e abro. Sabe o que estava
escrito lá dentro? “Parabéns! Você adquiriu o mais avançado e seguro
preservativo do mercado brasileiro”. Era uma bula. Escrita por algum
conhecedor, é claro, dentro da caixinha da camisinha. Claro que me entusiasmei
e segui a leitura deixando a amada de lado. Broxei, é claro. Mas, em
compensação, fiquei sabendo que “o agente espermicida nonoxinol (essa não tem
no Aurélio) 9 (logo o 9?) é contra as DSTs”.
Depois dessa informação, aí sim, voltei para
a alcova. Mas e a amada, onde estava?
E lembre-se sempre: todo medicamento deve
ser mantido fora do alcance das crianças. E não tome remédio sem o conhecimento
do seu médico. Pode ser perigoso para a sua saúde.
E pra cabeça!
Agora, falando sério. Admiro os escritores
de bula. Assim como invejo os poetas. Talvez por nunca ter sido convidado (nem
teria experiência) para escrever uma e nunca tenha conseguido escrever um
poema. Sempre gostei de escrever as linhas até o final do parágrafo.
Para mim, o poeta é um talentoso preguiçoso.
Nunca chega ao final da linha. Já repararam?
Já o bulático, esse sim, é um esforçado
poeta!
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Mario
Prata é escritor, dramaturgo, jornalista e cronista brasileiro. É natural
de Uberaba (1946), Minas Gerais, mas viveu boa parte da infância e adolescência
em Lins, interior de São Paulo. Em mais de 50 anos de escrita, tem no currículo
3 mil crônicas e cerca de 80 títulos, entre romances, livros de contos,
roteiros e peças teatrais. Na carreira, recebeu 18 prêmios nacionais e
estrangeiros, com obras reconhecidas no cinema, literatura, teatro e televisão. Fonte: site oficial do autor
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