| Jânio Quadros, Gastone Righi, o colunista e Jomar Morais |
O
DIA EM QUE BEBI COM JÂNIO
Parte
2 – O ESTILO DO CAMPEÃO
─
Uísque com gelo, só gelo ─ esclareço ao som de três batidas enérgicas na porta
da casa no Guarujá.
─
Sou eu ─ identifica-se o deputado federal Gastone Righi sem precisar dizer o
nome: o vozeirão do ex-locutor de parque de diversões vale como CIC, RG e
certidão de nascimento.
O
ex-presidente Jânio Quadros se alegra ao saber quem chegou. Deposita na mesa a
garrafa de vinho do Porto que acabou de abrir, sai para atender e volta de
braços dados com a figura imponente. Solidamente gordo, cabelos fartos e longos, o rosto emoldurado
pela barba espessa, Gastone Righi lembra um caminhoneiro de longo curso que faz
bicos em programas de luta-livre.
─
Chegou na hora, meu bem, vai beber o quê? ─ Jânio fica meio meloso quando já
decolou, ouvira meu pai dizer há muito tempo.
Uísque,
responde, depois de um possante “boa tarde!”, o deputado nascido em Santos e
janista desde vidas passadas. O anfitrião ordena ao parceiro que providencie
água mineral e o material de combate: uma garrafa de Chivas, dois copos para
uísque (baixos), balde de gelo e um copo de vinho.
─
Dos grandes ─ especifica. ─ Eloá está na cozinha, ela sabe onde encontrar essas
coisas.
Sabe mas não quer contar, informam frases truncadas que logo começam a chegar da cozinha: “…bebeu demais…”, “…tem limite…, ”…’é o fim do mundo…” Mas Gastone é teimoso, e dois minutos depois reaparece com a encomenda nos braços. Todos se servem. O deputado senta-se num sofá branco, Jomar e eu ocupamos as duas poltronas pretas. O ex-presidente acomoda-se na cadeira por trás da mesa sobre a qual se equilibram um busto de Abraham Lincoln, uma estatueta de Abraham Lincoln, um dicionário de Português, um cinzeiro com meio charuto apagado, pilhas de jornais ainda em sacos plásticos, um capacete de revolucionário de 1932 e, agora, um cálice de vinho. Dos grandes.
Sabe mas não quer contar, informam frases truncadas que logo começam a chegar da cozinha: “…bebeu demais…”, “…tem limite…, ”…’é o fim do mundo…” Mas Gastone é teimoso, e dois minutos depois reaparece com a encomenda nos braços. Todos se servem. O deputado senta-se num sofá branco, Jomar e eu ocupamos as duas poltronas pretas. O ex-presidente acomoda-se na cadeira por trás da mesa sobre a qual se equilibram um busto de Abraham Lincoln, uma estatueta de Abraham Lincoln, um dicionário de Português, um cinzeiro com meio charuto apagado, pilhas de jornais ainda em sacos plásticos, um capacete de revolucionário de 1932 e, agora, um cálice de vinho. Dos grandes.
Jânio
já tinha liquidado o primeiro em dois goles quando noto que está de tênis. Tiro
o paletó, afrouxo a gravata e ataco o Chivas. A primeira dose desce redonda.
Três da tarde, confiro no relógio. A conversa deve ir até as cinco. O
regulamento é sucinto e claro: perde quem fica grogue mais cedo, e o intervalo
entre cada gole não pode passar de cinco minutos. Com seis copos ganho essa parada, calculo.
Com oito, mando o homem à lona. Ninguém aguenta tanto. Nem ele.
Ele
toma a iniciativa com um gancho no fígado do governador Paulo Maluf, que não
aprecia a idéia de transmitir o cargo de governador ao ex-presidente.
─
Deus me deu um Adhemar de Barros com correção monetária ─ Jânio golpeia, surpreendendo Jomar com a
brusca mudança de opinião sobre a figura que havia elogiado de manhã e agora,
no quarto cálice, está comparando ao velho inimigo que transformou em sinônimo
de corrupto.
Ainda
não decidiu se será candidato a governador, fico sabendo no fim do segundo
copo.
─
Se o for, considero-me imbatível ─ solta a famosa combinação próclise-ênclise.
Enquanto
balança a cadeira sem sinais de cansaço, trata de temas variados ─ governo
militar, inflação, Leonel Brizola, problemas domésticos ou planetários,
biquíni, Alberto Pasqualini, briga de galo, Winston Churchill. Sem embaralhar o
raciocínio nem claudicar no português castiço, termina o quinto cálice. Já vai
derrubando o sexto entre comentários sobre governos fortes e governos fracos
quando vislumbra um vulto na janela. Interrompe a discurseira, vira a cabeça
para a direita, abre um sorriso e ergue a voz:
─
Olha! Parece um capuchinho!
O
capuchinho é Pedro Martinelli, que segue disparando flashes como se não tivesse
ouvido nada. Corpulento, barba e cabeleira compridas e ruivas, o rosto rubro de
nascença avermelhado pelo sol do Guarujá, Pedrão parece mesmo um capuchinho,
concordo em silêncio. Somos amigos há séculos. Como é que nunca percebi o que
Jânio enxergou com tanta nitidez mesmo estando pra lá de Bagdá? E a poucos
metros de Marrakesh, deduzo ao ouvir o que está dizendo sem que ninguém tenha
feito alguma pergunta sobre o tema:
─
Os Estados Unidos estão em franca decadência. Para substituí-los, está
emergindo a China, que aposentará o marxismo e será a grande potência do
próximo século.
Coisa
de profeta, saberei menos de 30 anos depois. Coisa de maluco, achei naquele
instante.
─
Acham que sou louco ─ ele parece adivinhar o que estou pensando. ─
Responsabilizam-me até pelas calmarias que trouxeram Pedro Álvares Cabral a
esta terra.
Termina
o oitavo cálice. Começa o quarto copo. Dona Eloá aparece na porta do escritório
com um talão de cheques na mão, destaca uma folha e pede ao marido que coloque
data e assinatura. A quantia ela vai preencher no supermercado, explica.
─
Você precisa disto para quê? ─ Jânio confirma a fama de sovina.
─
O que é que você acha? Esta casa ficou vazia dois meses e meio─ a paciência de dona Eloá não tem fim.
Ele
atende à solicitação e devolve o cheque.
─
Você assinou na data e datou a assinatura ─ a paciência de dona Eloá está perto
do fim. ─ Assine outro cheque.
─
Eles aceitam assim mesmo ─ encerra o assunto Jânio.
É
agora, decido. Quem confunde data e assinatura não está bem. Empunho o quinto
copo grávido de otimismo. Ele empunha o
nono cálice com a expressão de quem flutua sobre nuvens profundamente azuis. É
a bebedeira, imagino. É a autoconfiança que identifica um grande campeão,
descobriria em meia hora.
Tarde
demais. (10/08/2010)
(No próximo sábado, 12, "O GOLPE DE MISERICÓRDIA")
PARA LER "A FERA DO GUARUJÁ" (PARTE 1)
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| AUGUSTO NUNES
Augusto
Nunes (Taquaritinga, 25 de setembro de 1949) é jornalista brasileiro.
Em
1971, ingressou nos Diários Associados como revisor. No ano seguinte, foi
contratado como repórter no jornal O
Estado de S. Paulo. Em 1973, Augusto foi para a revista Veja, onde permaneceu até 1986, quando
assumiu a mediação do programa Roda
Vida. Também dirigiu as revistas Veja,
Época e Forbes (edição brasileira) e os jornais O Estado de S. Paulo, Jornal
do Brasil e Zero Hora. Nunes
venceu quatro vezes o Prêmio Esso de Jornalismo e foi incluído numa seleção dos
seis mais importantes jornalistas do Brasil, feita pela Fundação Getúlio
Vargas. Atualmente, Augusto Nunes mantém uma coluna na revista Veja. Em agosto de 2013, voltou a ser
mediador do programa Roda Viva, da TV Cultura. (Fonte:
Wikipédia)
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