sábado, 5 de março de 2016

BAÚ DE PRESIDENTES: JÂNIO QUADROS (1/4). POR AUGUSTO NUNES

Jânio usa o dicionário para ensinar alguma coisa ao colunista

O DIA EM QUE BEBI COM JÂNIO

Parte 1: A FERA DO GUARUJÁ


─ Eu não disse? ─ ouvi meu pai dizendo em outubro de 1960.

Depois daquele comício em que Jânio Quadros comeu um sanduíche de mortadela no palanque, o prefeito Adail Nunes da Silva tinha dito que o homem seria presidente da República. E repetiu nos dois anos seguintes a profecia que acabara de ser confirmada pelas urnas.

─ Eu não disse? ─ ouvi minha mãe dizendo em agosto de 1961.

Depois daquele jantar em que Jânio lhe pediu um sanduíche de mortadela depois da sobremesa, dona Biloca tinha dito que o homem era maluco. E repetiu durante os sete meses de governo o diagnóstico que, disso ela não tinha dúvida, a renúncia à Presidência acabara de ratificar.

─ Eu não disse? ─ ouvi o repórter Jomar Morais dizendo em maio de 1980, sentado no banco traseiro do fusca que subia a Via Anchieta.

Em companhia de Jânio desde a madrugada, ele estava no jardim da casa de praia no Guarujá quando cheguei com o fotógrafo Pedro Martinelli, no começo da tarde, para a segunda etapa da reportagem de capa da edição 613 de VEJA.

─ Esse é do ramo ─ disse Jomar com voz baixa e cara de espanto. ─ Está tomando todas desde cedo e continua inteiraço. É fera.





Devia ter entendido o aviso, penitenciei-me em silêncio ao lado de Jomar no carro, com Pedrão no banco do co-piloto,  que escalava a Serra do Mar à noitinha de volta a São Paulo.  Que o homem era bom de copo eu sabia desde 1958, quando o vi derrubar mais de meia garrafa de conhaque enquanto jantava em Taquaritinga. Mas achei que o tempo conspirara a meu favor. Quase 22 anos depois da aparição lá em casa, ele já tinha 63 e eu, pouco mais de 30. Dá pra encarar, acreditei naquele 28 de maio de 1980. Foi o dia em que bebi com Jânio Quadros.

Jomar soube com quem estava lidando  logo depois de apresentar-se a Jânio em São Sebastião, última escala da rota percorrida pelo cargueiro norueguês que o trazia da temporada de dois meses na Europa. O viajante resolveu descer para  passear na cidade deserta às sete da manhã. Ele já fez o aquecimento no navio, deduziu o repórter ao ver o candidato a homem da capa de VEJA beijar com a mesma animação uma septuagenária vestida decorosamente e uma jovem de biquíni, traje que havia banido por decreto tão logo assumiu a Presidência.

Entre São Sebastião e Santos, enquanto Jomar bebia água mineral, Jânio traçou 20 latas de cerveja dinamarquesa. Era só o começo, mostraria durante o almoço. Entre garfadas no prato com arroz, feijão, bife e batatas fritas, o anfitrião derrubou seis copos americanos de caipirinha sem interromper a entrevista, sem perder em nenhum momento o ritmo e o rumo. “Quem bebe caipirinha enquanto come é craque”, observou Pedro Martinelli ao ouvir a informação sussurrada no jardim. E então  Jânio Quadros apareceu na porta da casa. Vestia um slack preto.

E continuava alegre, avisou o sorriso. Continuava loquaz, avisou a discurseira durante os cumprimentos. E continuava sedento, avisou a pergunta formulada tão logo se acomodou por trás da mesa do escritório:

─ O que os senhores jornalistas vão beber?, quis saber, estendendo a mão para a garrafa de vinho do Porto na estante.

Pedrão já estava do lado de fora da casa, testando lentes e ângulos perto da janela da sala.  Jomar pediu mais um copo de água mineral.

─ Uísque ─ caprichei na voz de frequentador de saloon.

O duelo do Guarujá iria começar. (08/10/2010)

(Amanhã: O ESTILO DO CAMPEÃO, segundo dos três capítulos, narra o início da histórica bebedeira)



AUGUSTO NUNES

Augusto Nunes (Taquaritinga, 25 de setembro de 1949) é jornalista brasileiro.


Em 1971, ingressou nos Diários Associados como revisor. No ano seguinte, foi contratado como repórter no jornal O Estado de S. Paulo. Em 1973, Augusto foi para a revista Veja, onde permaneceu até 1986, quando assumiu a mediação do programa Roda Vida. Também dirigiu as revistas Veja, Época e Forbes (edição brasileira) e os jornais O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e Zero Hora. Nunes venceu quatro vezes o Prêmio Esso de Jornalismo e foi incluído numa seleção dos seis mais importantes jornalistas do Brasil, feita pela Fundação Getúlio Vargas. Atualmente, Augusto Nunes mantém uma coluna na revista Veja. Em agosto de 2013, voltou a ser mediador do programa Roda Viva, da TV Cultura. (Fonte: Wikipédia)

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