DIVINA
DIVA
Pedi
para tocar seus seios. Rogéria disse que sim.
Eu
era quase um moleque
Por Walcyr
Carrasco
Época
Digital
12/09/2017
- 08h01
Eu
era menino, morava em Marília, interior de São Paulo. Meu pai me levava quase
diariamente ao cinema. Era aquele tipo de cineminha antigo, que exibia duas ou
três produções diferentes por dia. Certa vez, na saída da última sessão, vi um
cartaz: Les girls. Era um espetáculo que se apresentaria dali a alguns dias.
Mas que espetáculo? Ninguém na família queria explicar. Só que eu não ia. De
acordo com mamãe, por ser muito tarde – começava às 11 horas da noite e eu
tinha escola de manhã. Meu pai também não quis falar mais a respeito. As
explicações teriam ficado por aí se o assunto não movimentasse a cidade. Logo
descobri que era um show de homens vestidos de mulheres. Por que tanto segredo?
Era teatro? Não exatamente. Eram homens transformados em mulheres. Mais difícil
ainda de entender, como era possível tal transformação? O show veio, causou
escândalo e partiu, para sua turnê em cidadezinhas do interior,
apresentando-se, como em Marília, até em cinemas. Afinal, o único teatro que
havia, então, na cidade era sediado no colégio das freiras. Até hoje imagino os
pais de família locais esgueirando-se para assistir, de olhos arregalados, aos
travestis. Entre eles Rogéria, que partiu tão recentemente. Eles? Elas? No caso
eu prefiro ele, porque é assim que Rogéria/Astolfo preferia. Nunca negou ser um
homem, dizia que Rogéria foi moldada no corpo de Astolfo.
A
simples passagem do show nos trouxe um outro nível de informação. Meus amigos e
eu simplesmente não sabíamos que a existência de travestis era possível. Tanta
falta de informação parece estranha do ponto de vista de hoje, num mundo onde
se defendem os direitos dos transexuais. E onde um personagem transexual brilha
na novela das 9, a Força do querer, de Gloria Perez. Mais tarde, quando me
mudei para São Paulo, aos 15 anos, li muitas reportagens sobre Rogéria. Via
suas fotos glamourosas. Mesmo não sendo política, e muito menos ativista,
Rogéria promoveu o debate sobre sexualidade. Só pelo fato de existir. Confesso,
eu era bobo.
Não
conseguia entender como quem nasceu com um corpo masculino consegue moldar o
próprio a ponto de se tornar uma mulher, e que exagero de mulher! Bonita!
Durante a ditadura militar, as revistas de nus femininos eram proibidas de, nas
capas, mostrar dois seios de mulher. Como se um só fosse menos subversivo que
dois (vai entender quem fez essa lei). Entretanto, travestis como Rogéria
faziam seus shows e fugiam da polícia. No filme Divinas divas, de Leandra Leal,
elas falam de sua luta, feita de pequenos grandes enfrentamentos. Rogéria tinha
o apoio da mãe desde que, aos 14 anos, começou a se vestir de mulher. Era
muito. Até hoje há travestis que são expulsos de casa e vivem toda uma saga
para existir.
Uma
noite, faz muito tempo, fui convidado para jantar na casa de um amigo. Éramos
seis ou sete pessoas, entre elas uma atriz famosa na época. Eis que surge, para
minha surpresa, Rogéria. Tratada como convidada de honra. Isso faz bem mais de
30 anos. Ao vivo, Rogéria era mais glamourosa que nas revistas! Usava decote.
Todos tentamos agir com a máxima naturalidade. Seria mal-educado demonstrar
curiosidade, e portanto a ignoramos. De repente percebi que fingíamos que ela
não estava lá, conversávamos amenidades, falávamos sobre teatro e televisão. Um
fiasco. Porque na verdade queríamos saber tudo sobre ela. Não podíamos ignorar
sua presença! Mas seria mal-educado fazer perguntas diretas?
Bem,
eu sou mal-educado.
Então
perguntei como tinha aqueles seios.
Respondeu
que eram hormônios e silicone. Hoje, garotas saindo da adolescência já botam
silicone. Era muito menos comum, na época. Havia vários métodos para aumentar
peitos, inclusive a colocação de bolsas com uma solução salina. O problema era
que bastava um gesto descuidado e pronto: a bolsa furava e o seio murchava.
Aconteceu, sim. No caso, eu tinha uma
curiosidade bem mais técnica. Pedi.
–
Posso tocar seus seios?
Rogéria,
generosamente, entendeu minha dúvida. Eu era quase um moleque. Sorriu. Disse
que sim. Com cuidado e delicadeza, eu apertei seus seios. Tecnicamente. Senti
seu peito. Há, sim, uma diferença no toque quando o silicone entra na jogada.
Agradeci. A conversa descontraiu-se, o jantar correu animado. Minha curiosidade
foi satisfeita.
Ela
me deu seu telefone. Ficamos de nos falar. Nunca liguei. Lamento. Era uma
grande pessoa para conhecer. Mesmo assim, me ajudou a olhar a vida sem
preconceito.
***
LEIA TAMBÉM
DE PAI PRA FILHO: Depois de certa idade, mulher vira destilado.
Deve ser apreciada com moderação.
Veja mais em "Rapidíssimas". No blog. (OS)
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