BONS TEMPOS AQUELES EM QUE A SAÚVA ERA O 'GRANDE PROBLEMA NACIONAL' |
OBRAS NOSSAS
(Por. J. R. Guzzo) Está garantido que vai errar, sempre, quem disser que “o grande
problema do Brasil” é este ou aquele, por mais tenebroso que seja. O Brasil,
sendo o Brasil, não trabalha com essa mercadoria – “o grande problema”. Não há
por aqui a possibilidade prática de separar uma calamidade bem definida ou
mesmo duas, três ou meia dúzia que consigam ficar claramente acima de todas as
demais em matéria de perversidade em estado puro. São tantas, e de índole tão
ruim, que nossos melhores esforços para escolher uma prioridade capaz de
inserir o Brasil no mundo desenvolvido, caso existissem, dariam bem pouco
resultado no mundo das coisas reais. Bons tempos os da saúva, por exemplo, que
nos fazia a gentileza de oferecer a qualquer momento a explicação comprovada
para tudo o que dava errado neste país. Na verdade, era tão simples eleger na
época “o grande problema” nacional que praticamente ninguém tinha dúvida: ou o
Brasil acabava com a saúva, ou a saúva acabava com o Brasil. Vá tentar alguém,
hoje em dia, dizer alguma coisa parecida. Só conseguirá produzir ruído de motor
que não pega – e deixar todo mundo com a certeza de que falou bobagem. Melhor
ficar quieto, e dar a impressão de que você não tem preparo para falar de
assuntos sérios, do que abrir a boca e eliminar as dúvidas a respeito, como nos
aconselhava Mark Twain.
“O Brasil mostrou mais uma vez, diante do mundo inteiro, o
relacionamento doentio que existe entre governos, construtoras de obras, bancos
estatais, políticos, partidos e mais um monte de gente com carteirinha de
autoridade na hora de construir qualquer obra pública”
Em certos momentos, porém, um desses “grandes problemas” que impedem
o Brasil de ir adiante como deveria é exposto de maneira realmente espetacular,
em plena luz do meio-dia – e em tais momentos é apenas lógico, além de humano,
que a calamidade exibida na frente de todos chame mais atenção que quaisquer
outras. É o caso, justo agora, da Olimpíada do Rio de Janeiro, que joga para o
primeiro plano o problema fatal que o Brasil tem com as suas obras públicas. É de
fato um fenômeno: fora as aberrações que acontecem nos países mais desgraçados
do mundo, não há nada parecido com as misérias das obras públicas brasileiras.
Quase nunca ficam prontas no prazo, com a qualidade e no preço que foram
escritos no contrato – ou, pior ainda, como ocorre com alta frequência, não
ficam prontas nunca. Há as que não podem ser usadas depois de entregues. Há as
que simplesmente desabam; o Brasil deve ser um dos campeões mundiais em matéria
de viadutos, pontes ou ciclovias elevadas que vêm abaixo de uma hora para
outra. Há as que não servem para nada, como hospitais sem equipamento, açudes
sem água ou museus para a recepção de extraterrestres. Todas produzem rigorosas
investigações que não impedem que tudo continue igual na obra seguinte. São
nossas obras. São obras nossas.
José Roberto Guzzo é do Conselho Editoral da Abril e colunista das revistas EXAME e VEJA |
A Olimpíada do Rio, naturalmente, é uma celebração. Uma vez em
andamento, o foco se concentra na magia do esporte – o público está mais
interessado em Usain Bolt do que no prefeito Eduardo Paes, quer ver medalhas de
ouro para os atletas brasileiros em vez de discutir os encanamentos da Vila
Olímpica. Além disso, a cidade ganhou com os Jogos, de forma indiscutível,
melhorias que enriquecem os seus extraordinários encantos, desde que não sejam
abandonadas logo após o fim dos Jogos. Mas o fato é que o Brasil mostrou mais
uma vez, diante do mundo inteiro, o relacionamento doentio que existe entre
governos, construtoras de obras, bancos estatais, políticos, partidos e mais um
monte de gente com carteirinha de autoridade na hora de construir qualquer obra
pública – nada, simplesmente nada, é normal quando eles se juntam. É como se
todos trocassem de personalidade. Quando uma empresa privada contrata uma
empreiteira para a construção de um galpão com tantos metros quadrados de área
e com tais ou quais itens de acabamento, vai receber exatamente o que
contratou, não vai ter de pagar mais do que o combinado e receberá a obra
pronta no dia previsto. Quando a mesma empreiteira faz uma obra para o poder
público, tudo fica diferente – o poder público aceita qualquer absurdo em
matéria de atraso, estouro no orçamento, qualidade da construção e por aí vai.
É claro: o governo não paga nada, nunca, porque nada produz. Quem paga é o
contribuinte de impostos, a quem não se permite um minuto de atraso na hora de
pagar, e quem paga mais são justamente aqueles a quem o dinheiro faz mais
falta.
A Olimpíada chegou no exato momento em que os processos de Curitiba
expõem a corrupção e a inépcia sem freio que marcaram nos últimos treze anos de
governo a contratação de obras e a compra de equipamentos públicos no Brasil.
Ninguém, pelo jeito, aprendeu nada.
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