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EM TODAS AS VEZES, O FOGO
(*)
(Por Fernando Gabeira) É
arriscado funcionar como um detector de fumaça num momento de alegria e emoção
que envolve o País. Mas há fogo intenso na Amazônia, que vive uma seca brava. E
houve muito fogo no Rio Grande do Norte, com ônibus e instalações sumindo nas
labaredas.
No
caso da Amazônia, já tivemos condições de conter o crescimento de incêndios.
Depende também de um esforço coordenado do governo. E ele deveria examinar onde
falhou. Já o episódio do Rio Grande do Norte, com mais de cem ataques e a
presença da Força Nacional, é um sintoma de que, na crise do sistema
penitenciário, continuamos sem saída, apenas empurrando com a barriga.
Já
é difícil falar do sistema penitenciário em tempos normais. No auge de uma
Olimpíada, os incêndios no Nordeste parecem ser num outro país. As atenções
estão voltadas para a Olimpíada, a própria imprensa está concentrada nos Jogos,
como todo o aparato de segurança. No entanto, os incêndios revelam um padrão
inquietante. Nasceram de ordens das cadeias, tal como no Rio, em São Paulo,
Santa Catarina, Maranhão.
“Na
velha lógica da gafieira,
quem
está dentro não sai,
quem
está fora não entra,
dificilmente
vamos encontrar o equilíbrio”
Todos
sabem que o sistema penitenciário está em crise. E agora percebem que grande
parte dos líderes do crime organizado opera de dentro das cadeias. Existe uma
espécie de ilusão nacional de que, uma vez condenando e prendendo as pessoas,
tudo está resolvido. A sociedade não se interessa por presídios, os juízes
cuidam de novas sentenças, os advogados se afastam gradativamente. E a polícia
lava as mãos, satisfeita.
Claro
que os presídios precisam melhorar, mas mesmo quando estiverem melhores é
ingenuidade supor que os presos não continuem a cometer crimes dentro da
cadeia. A Inglaterra, por exemplo, desenvolveu inúmeros trabalhos de
inteligência e prevenção dentro de presídios. Estamos no estágio ainda de
bloquear ou não celulares. Mas não há inteligência nem cuidados preventivos.
Num
momento como este, de quebradeira, parece um luxo falar em investir em
prevenção do crime dentro das cadeias. Mas os motins quase sempre terminam com
destruição de equipamentos e instalações. E nos incêndios nas ruas, com
prejuízos para todos. Compreendo que todos estivessem focados na Olimpíada. Mas
os deputados estavam à toda. Já nem se movem mais para conflitos e presídios,
talvez com medo de ficar por lá.
Se
houvesse um sistema nacional de relatórios diários sobre as principais cadeias
e um grupo analisando esses dados, creio que parte dos motins seria evitável.
Às vezes acontecem depois de um prolongado período de reclamações sobre comida
estragada. Os funcionários de presídios não precisariam escrever, apenas
responder a um amplo questionário.
No
caso do Rio Grande do Norte, às vésperas do bloqueio dos celulares, seria
possível aconselhar a monitorá-los um pouco, traçar um quadro de suas conexões.
Reconheço que falar é fácil depois que acontece. Mas com um sistema de
vigilância de pé, quando acontece é possível ao menos uma referência para a
crítica.
FERNANDO GABEIRA É JORNALISTA |
Em
vários Estados o processo suplantou a polícia local, foi preciso a intervenção
da Força Nacional e do Exército, isso num momento em que está tudo orientado para
a segurança da Olimpíada.
Embora
nunca se divulguem as cifras com clareza – mesmo porque ninguém pergunta –,
esses movimentos são caros. Em termos puramente econômicos, o crime liderado
por presidiários nos impõe pesadas perdas. São coisas que, calculando na ponta
do lápis, mesmo abstraindo os fatores humanos, acabam sendo muito mais custosas
para o País do que enfrentamento direto do problema, ainda que investindo algum
dinheiro.
Leio
no belo livro Brasil, uma Biografia,
de Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, que os portugueses pouco se
importavam com a situação dos escravos que transportavam. Perdiam 10% de sua
carga humana, o que era considerado pelos franceses como um índice de epidemia.
Pensei: se os portugueses investissem um pouco mais na alimentação dos
escravos, talvez conseguissem um melhor resultado econômico. E, sobretudo,
poupariam muitas vidas.
Empurrar
com a barriga, recusar-se a enfrentar uma reforma, não é a melhor tática.
Perdemos vidas, dinheiro.
Criar
condições dignas de prisão é apenas um dos caminhos. Depende de recursos,
reorganização geral. Há muita gente nas cadeias e muita gente com mandato de
prisão nas ruas. Na velha lógica da gafieira, quem está dentro não sai, quem
está fora não entra, dificilmente vamos encontrar o equilíbrio.
“Parece
que ministros da Justiça ignoram
a realidade das cadeias”
Mas
é preciso ir um pouco além. O comando do crime organizado está em grande parte
nas cadeias. O esforço policial, pelo menos teoricamente, está concentrado nas
ruas.
O
episódio do Rio Grande do Norte foi engolido pela Olimpíada. Revoltas semelhantes
também foram esquecidas. No momento, não vejo o governo tentando ligar as
pontas, compreender a dimensão nacional do problema. Ele espera que alguma
coisa estoure nos Estados e vai socorrer quando as coisas escapam ao controle
da polícia. Parece que ministros da Justiça ignoram a realidade das cadeias.
Outro
dia, pesquisando sobre violência em Paraty, constatei que as facções criminosas
na pequena cidade histórica foram organizadas por gente que passou por
presídios do Rio e, ao voltar à liberdade, dividiu as regiões de influência e
criou suas facções criminosas. Eles aprenderam na cadeia. Assim os vários
presídios estão aprendendo uns com os outros e aterrorizando as ruas. Mas o que
é que o governo aprendeu? É hora de compreender a violência urbana não só nas
ruas, mas em suas articulações com um sistema penitenciário em crise.
A
longa crise política dificultou o debate. Os ministros da Justiça eram
escolhidos para defender um governo cambaleante. O atual está concentrado na
Olimpíada, falando de terroristas e redes sociais. Quando tudo isso passar e
ele examinar bem o que aconteceu no Rio Grande do Norte e compreender o susto
que passamos, pode tomar alguma iniciativa. Será um legado indireto da
Olimpíada.
ARTIGO PUBLICADO EM "O ESTADO DE S. PAULO", EM 12/08/2016
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