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A CANALHICE
HONESTA É UMA ARTE MORAL
ACESSÍVEL
SOMENTE PARA ALMAS SINCERAS
UOL –
15/08/2016 – 02h00
(Por Luiz Felipe Pondé) Você sabe o que é um canalha honesto? Um canalha honesto é alguém
que diz para você que as reuniões na casa dele para discutir filosofia é para
pegar mulher. Ou que aprendeu a cozinhar para pegar mulher. Um canalha
desonesto é um canalha que diz que de fato a filosofia é importante para ele ou
que cozinhar o faz se sentir mais autônomo na vida.
A arte da desonestidade na canalhice pode ir longe ao ponto de você
dizer que é de fato feminista, e não que ser feminista num homem pode ajudá-lo
a pegar mulher – o que eu, pessoalmente, duvido que tenha sucesso de fato.
O personagem Palhares, do Nelson Rodrigues, era o canalha honesto.
Era marxista para pegar mulher, depois se converteu à psicanálise, ao nudismo,
à maconha, a Jesus. E Nelson dizia que um dia haveríamos de ter saudade do
Palhares. Mais uma vez nosso sábio acertou em sua previsão. Segundo Nelson, nem
a canalhice estaria a salvo da má-fé que se instalaria no seio da cultura
ocidental.
Pois bem, e aí chegamos a uma conversa que tive há alguns dias sobre
essa canalhice desonesta chamada poliamor. O primeiro traço de canalhice
desonesta é quando o agente da ação diz que faz X porque ele evoluiu para tal.
No caso do poliamor, para uma forma de amor coletivo e sem ciúmes. Toda pessoa
que se diz segura é um canalha desonesto. Como se sabe, toda virtude verdadeira
é silenciosa.
Em nossa conversa, o poliamor era apresentado como uma condição em
que você pode dividir pessoas amorosamente e sexualmente com outras pessoas e
tudo bem.
Veja bem: sempre existiu gente que gosta de sacanagem coletiva.
Entendo que um canalha honesto tente convencer a namorada ou mulher a aceitar
que uma colega da faculdade ou do trabalho venha passar um final de semana em
Gonçalves com eles. E, que, em dado momento, tente fazer com que as duas se
peguem. Um sonho clássico de consumo de canalhas honestos (ou, simplesmente, de
homens honestos) é ver duas minas se pegando.
Entendo também que mulheres honestas fantasiem com dois caras
comendo elas ao mesmo tempo. A canalhice honesta é uma arte moral acessível
somente para almas sinceras.
INTERNET: PONDÉ |
Uma comparação comum que se faz com o poliamor é com a prática do
harém. Ao ouvir essa comparação outro dia, subiu à minha alma uma grande
indignação!
Eu disse de forma veemente: "Pare por aí! Num harém, as
mulheres competiam e se matavam. Matavam os filhos homens umas das outras, com
medo de que uma delas se tornasse muito poderosa por ter dado um filho varão
para o Sultão. Era um inferno de traições". Inclusive se comiam umas as
outras por desespero e solidão confessa (coisa hoje que muita gente não ousa
confessar que seja o motor de muita mulher comendo umas as outras, em todas as
idades).
Tomado por indignação e pela certeza de que, ao compararmos o
poliamor com um harém, faltamos com respeito para com todas aquelas mulheres,
muitas vezes infelizes (uma das maiores cretinices de nossa época é a falta de
respeito para com a infelicidade), continuei de forma apaixonada: "Aquelas
mulheres competiam e se matavam, por isso mesmo eram gente séria e digna! Merecem
nosso respeito!".
Imagino que muita gente ao me ouvir dizer isso não me entenda
plenamente. Como assim, gente que compete e se mata é gente digna e merece
nosso respeito?
A vida digna é imersa em sangue, beleza e sofrimento. O maior engano
contemporâneo com relação a qualquer forma verdadeira de ética e virtude é algo
que os antigos (gente muito mais séria do que nós) sempre souberam, incluindo
Aristóteles em sua filosofia das virtudes conhecida como "Ética a
Nicômaco": a virtude só nasce num terreno que lhe é hostil. Qualquer outra
afirmação sobre virtude é falsa.
A honestidade do canalha Palhares do Nelson nasceu no momento em que
ele confessou que agarrou a cunhada mais jovem na saída do banheiro por puro
desespero: a beleza dela era maior do que qualquer risco de ser pego no meio do
crime.
A desonestidade do poliamor nasce da sua demanda de garantia de não
sofrimento. Um harém era um lugar de agonia, e virtudes são filhas da agonia.
Luiz Felipe
Pondé (1959, Recife) – filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em
epistemologia pela Universidade de Tel Aviv – discute temas como comportamento,
religião, ciência. É colunista da Folha de S. Paulo
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