MADURO: "EL LOCO" |
A
ESQUERDA DE NICOLÁS MADURO
E O
DESAFIO DAS ESQUERDAS
O ESTADO DE S. PAULO - 05
Setembro 2016 | 12h29
(Por Marco Aurélio Nogueira) Parte
dos efeitos colaterais do processo de impedimento e cassação de Dilma Rousseff
materializou-se fora do Brasil. Não se sabe bem que resultados e repercussões
concretas eles terão, mas se sabe que alguma atenção deverão merecer do novo
governo brasileiro, ainda que sem exagero ou alarde.
A
campanha contra o “golpe parlamentar” atingiu parte da imprensa internacional,
acostumada a ver o Brasil ou como um país de democracia incipiente, uma
“república das bananas”, ou como terra do grande projeto de desenvolvimento e
inclusão social liderado por Lula. Não foi um acaso que Dilma e o PT tenham
dado tanta importância ao contato com jornalistas estrangeiros, em entrevistas
e declarações muito mais duras do que as que faziam internamente. Vocalizada
com insistência e mediante frases contundentes, a campanha foi bem sucedida. No
plano das relações entre os Estados, o estrago parece bem mais localizado e
dificilmente prosperará, mesmo na América Latina, região em que se concentraram
as reações mais inflamadas. Cuba fez uma condenação protocolar suave, o Uruguai
torceu o nariz, mas Equador, Bolívia e Venezuela chamaram de volta seus
embaixadores no Brasil, abrindo uma pequena crise diplomática.
Dentre
eles, o presidente venezuelano Nicolás Maduro foi o que empregou os termos mais
pesados. Para ele, o golpe que levou à cassação de Dilma Rousseff, no Brasil,
foi um “golpe oligárquico da direita”, com o qual “as oligarquias políticas e
empresariais, em aliança com setores imperialistas, recorreram a artimanhas
jurídicas sob o formato de crime sem responsabilidade para ascender ao poder
pela única via possível: a fraude e a imoralidade”. Tratou-se, para ele, de uma
“investida oligárquica e imperial contra os processos populares, progressistas,
nacionalistas e de esquerda, cujo único fim é restaurar os modelos neoliberais
de exclusão social e acabar com os modelos de democracia genuína e de
integração da região alcançados pelos presidentes Hugo Chávez, Néstor Kirchner,
Lula, Evo Morales, Tabaré Vázquez e Rafael Correa”.
Palavras
ameaçadoras e peremptórias, que, no entanto, precisam ser bastante
relativizadas. Elas perdem força tanto pelo estilo político e pela atuação
governamental de Maduro – fato que, embora sujeito a polêmicas e controvérsias,
ajuda a que se problematize a frase –, quanto pelo teor das palavras, pelo
contexto em que foram proferidas e pelo modo como isso ocorreu. Maduro se
refere a certa ideia de América Latina, de movimento popular e de esquerda, mas
fala como se fosse possível passar por cima de diferenciações e
particularidades, como se coubesse a ele determinar o que é a América Latina ou
a esquerda, submetendo a variedade a uma visão reducionista. Fala como se
estivesse de posse de um metro que lhe permitisse definir onde começa e onde
acaba a esquerda. Em boa medida, sua manifestação se destina muito mais a sair
do cerco em que ele próprio se encontra, numa tentativa de recuperar o apoio de
esquerdas que já não aplaudem incondicionalmente seu governo. Sua indignação é
calculada.
Nem
todas as pessoas de esquerda, por exemplo, acham que houve um golpe contra
Dilma. Nem todos os críticos de Dilma são defensores de Temer, assim como nem
todos os defensores de Dilma são de esquerda. Há esquerdas que nem sequer
aceitam que se possa falar em nome “da” esquerda, ou seja, de um bloco
monolítico e indiferenciado de correntes, ideias e partidos que pensariam o
mundo do mesmo jeito. Outras se circunscrevem à defesa de direitos e
identidades, dando menor peso às questões do poder e do Estado. Há esquerdas
liberais e esquerdas cristãs, esquerdas seculares e religiosas, e assim por
diante.
“A
campanha contra o “golpe parlamentar” atingiu parte da imprensa internacional,
acostumada a ver o Brasil ou como um país de democracia incipiente, uma
“república das bananas”, ou como terra do grande projeto de desenvolvimento e
inclusão social liderado por Lula”
Mesmo
quando as esquerdas estavam em melhores condições de temperatura e pressão a
unidade entre elas não foi o fator predominante. Foram muitos comunismos,
muitas ideias de socialismo, muitos partidos e correntes progressistas, e elas
mais brigaram entre si do que cooperaram. Se unidade houve, foi episódica,
localizada e de curta duração. Não se sustentou. Nem sequer naquela que ficou
conhecida como pátria do socialismo, a URSS.
Estudiosos
do tema, cientistas políticos, historiadores, sociólogos, dirigentes e
intelectuais partidários até hoje tentam encontrar um modo de classificar e
explicar tal diferenciação, que só fez crescer com o passar do tempo. Para
tentar separar o joio do trigo, fala-se de “verdadeira esquerda”, de “esquerda
radical ou autêntica”, ou de “esquerda de luta” e “esquerda parlamentar”,
esquerda “social” e esquerda “política”, esquerda “revolucionária” e
“reformista”, binômios inesgotáveis nos quais um dos termos é valorado como
sendo o “lado bom” em detrimento do outro, o “lado mau”. Muito da contraposição
entre comunistas, socialistas e socialdemocratas – ou entre petistas e tucanos,
para falar do Brasil – se sustentou assim, com os retrocessos e as derrotas
conhecidas.
“Declarações
como a de Maduro não refletem a realidade concreta, mas só um pedaço da
realidade, aquela de que ele depende para se sustentar. Não deveriam ser
levadas muito a sério...”
Enquanto
o mundo e o sistema internacional funcionaram em blocos e alinhamentos rígidos,
enquanto as próprias sociedades se mantiveram nos limites da vida industrial
clássica – com seus padrões, suas classes, suas identidades, suas empresas,
seus sindicatos e partidos –, a figuração dicotômica e maniqueísta conseguiu se
sustentar, figurando a realidade e fazendo sentido, ainda que limitado. Com a
radicalização da modernidade e o mergulho do capitalismo em sua fase globalizada,
financeirizada e cognitiva, porém, o quadro se complicou e as tentativas de se
definir a “melhor” esquerda se tornaram caricatas. Nem por isso arrefeceram:
continuaram a ser feitas e a alimentar o aprofundamento da crise, da divisão e
da impotência das esquerdas, situação que as empurrou décadas para trás e fez
com que crescesse o desentendimento entre elas e a perda de força delas.
Nesse
momento, que é onde nos encontramos, a unidade das esquerdas se tornou um
desafio dramaticamente decisivo. Custoso e difícil, mas decisivo, sobretudo se
a questão for relançar as esquerdas no grande palco da política e das lutas
sociais. Não como personagens da “indignação coletiva” e do
“participacionismo”, mas como construtoras de propostas positivas e respostas para
os problemas das massas: como força de governo, não somente de oposição. Hoje,
não há mais como bater no peito e falar em nome de uma esquerda mítica,
estigmatizando como fariseus todos aqueles que pensam a esquerda de outro modo,
buscam novos caminhos e não aceitam as vozes de comandos de partidos-guia ou de
lideranças circunstancialmente empoderadas.
Por
isso, declarações como a de Maduro não refletem a realidade concreta, mas só um
pedaço da realidade, aquela de que ele depende para se sustentar. Não deveriam
ser levadas muito a sério, a não ser como demonstração de que arroubos
retóricos e frases de conveniência não nos levam para frente e nem nos ajudam a
entender o que precisa ser feito. Atrapalham, dificultando a que as esquerdas
procurem as razões e as ideias que promovam mais unidade entre elas.
Marco
Aurélio Nogueira é cientista social,
doutor em ciência política pela USP
e
professor de teoria política na Unesp
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