NEOBRASILEIRISMOS OU O SUCESSO DA VAQUINHA
Brasileirismos
são invenções brasileiras. No campo da música, da comida e da sexualidade, elas
abundam. São brasileirismos o jogo do bicho, o samba, a feijoada, confundir
fama com inteligência, não prender autoridade e dizer que bunda não tem sexo.
A presença
mascarada dos elos pessoais abraçados pela norma do dar-para-receber e do
vice-versa como algo obrigatório no espaço público é um outro brasileirismo que
contraria a lei válida para todos e nos faz desconfiar da liberdade.
Liberdade
que leva a escolhas, individualiza e acontece justamente na rua. Toleramos a
liberdade porque ela é um conceito chave nas constituições
"avançadas" que copiamos dos americanos, franceses e ingleses. Daí a
contradição tragicômica: temos leis avançadíssimas, sínteses das melhores
normas jamais produzidas no chamado "mundo civilizado", mas
lamentavelmente não temos franceses, americanos e ingleses para segui-las.
Voltemos,
entrementes, aos temas clássicos. Se a liberdade tem sido usada pelas elites
sobretudo para matar o competidor, a igualdade permanece sem solução. Continuamos
alérgicos à sua aplicação e o seu uso é sempre constrangido pelos rotineiros
"esse tem biografia", "esse é meu amigo", "esse é do
nosso partido", que são parte de um outro brasileirismo. A duplicidade
ética, expressa no axioma: aos inimigos a lei; aos amigos, tudo. Um postulado
que impede, no modelo e na realidade, o tratamento igualitário e um mínimo de
coerência.
* * *
jornalggn.com.br
jornalggn.com.br
A
brasileiríssima máscara entra em cena em tempos democráticos. Impossível não tomá-la,
como ocorre em outras sociedades, como um símbolo de forças antissociais: do
incesto que nega a oposição entre afinidade e consanguinidade, ou de condutas
abusivas e licenciosas cuja concretização exige a invisibilidade ou o disfarce
como no Carnaval.
Estamos
pensando em legislar o uso da máscara. Balas de borracha para policiais;
máscaras para os manifestantes. Mas se até em centro espírita as almas dizem
quem são, como admitir o poder dado a mascarados quando o ideal democrata é
justamente conhecer o adversário? Em meio aos elos confusos entre as injustiças
seculares e direito ao ativismo, o uso da máscara aumenta ou diminui a
possibilidade do irracionalismo e da boçalidade contida na violência? Afinal,
estamos querendo consolidar ou liquidar instituições?
* * *
Vivemos
um momento de exigências igualitárias que demandam o fim da separação entre a
casa e a rua: lei e cadeia na rua para os pé rapados; e, na casa, embargos de
todos os tipos para os amigos e parentes. Chamam isso de
"corporativismo" mas o nome verdadeiro é personalismo, como disse faz
tempo.
Brasileirismo
agradável foi testemunhar a sinceridade que baixou na Câmara dos Deputados com
o voto aberto. O voto sem máscaras porque ele liquida a duplicidade entre casa
e rua. "Como companheiro e colega eu não posso te cassar. Amanhã pode ser
minha vez e você, mesmo sem ser do meu partido, retribui. Mas no plenário eu
sou obrigado a fazê-lo, compreende? Antigamente, quando o voto secreto era
minha máscara eu votava contra a perda do teu mandato, pois tu és realmente um
ladrão! Mas, agora, temos essa lei que me obriga que eu seja o mesmo tanto em
casa quanto na rua. Então, vejam que coisa triste para a ética da casa e das
amizades, eu sou obrigado a tirar a mascara e a ser sincero!"
A
sinceridade é um neobrasileirismo. Ser o mesmo em todos os lugares é
impossível. Mas ter o propósito de ser o mesmo é o que chamamos de honestidade.
A próxima eleição vai dizer se a honestidade é uma tortura ou uma bênção.
* * *
O ministro Gilmar Mendes aponta uma anomalia. As multas que os condenados devem pagar não podem ser transferidas, por meio de uma brasileiríssima vaquinha, para outras pessoas. A sugestão do ministro seria a de fazer uma vaquinha capaz de pagar o mensalão.
Tal
parecer me lembra um evento bizarro mas idêntico, ocorrido nos primórdios da
ditadura militar, em 1964, no governo Castelo Branco. Foi a campanha "Ouro
para o bem do Brasil", destinada a reunir ouro para pagar a dívida externa
brasileira. Tal vaquinha fez com que muitas pessoas doassem alianças e
medalhinhas mas, diferentemente da vaquinha dos mensaleiros, jamais se soube
onde o ouro foi parar. Mas o
brasileirismo da vaquinha que retorna, como na ditadura, para livrar as multas
do mensalão, é um sucesso.
E se
um condenado a 20 anos, pergunta-me um amigo irritado, resolver fazer uma
vaquinha e conseguir na internet gente que fique em seu nome na prisão por um
dia? Façamos o calculo: 20 vezes 365 é igual a 7.300 dias. Ora, diz ele,
considerando o que os mensaleiros condenados já arrecadaram até agora, seria
tranquilo conseguir 7 mil e tantas pessoas solidárias para ficarem por um dia
na cadeia no lugar do condenado. E eles, é claro, iriam continuar atuando como
heróis nacionais injustiçados por uma mascarada de cunho político. Se tudo é
injustiça burguesa, por que não aplicar a brasileiríssima vaquinha para outras
penalidades?
Tento
argumentar, mas o amigo toma uma cerveja.
* * *
O
mesmo sujeito me diz o seguinte: "Olha aqui, DaMatta, estou pensando em
fazer uma vaquinha para deixar de trabalhar como um condenado. Quero poder
dizer não - esse imenso privilégio dos abençoados". Como bom brasileiro,
não disse nada. Mas pensei: se der certo eu também faço!
(ARTIGO PUBLICADO EM O ESTADO DE S.
PAULO, em 19/02/2014)
Nenhum comentário:
Postar um comentário