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SOBRE PRÍNCIPES E LEVIATÃS:
ANDANDO DE COSTAS?
Jota – 08/06/2016
(Por Carlos Melo) Está
claro que este não é mesmo o melhor momento para se meter a valente. Enfrentar
o interesse de grupos corporativos, incrustrados no Estado, pode aumentar o
desastre. Eles são capazes de criar um enorme mal-estar para o governo que
luta, antes de tudo, por sua própria continuidade.
De
forma que trombar com políticos, juízes e com o funcionalismo seria o mesmo que
pedir para aumentar as dúvidas a respeito da manutenção do governo. No quadro
em que se está, abrir um período de greves, protestos, boicotes e de
interrupção de atividades essenciais corresponderia a apagar o incêndio com
baldes de gasolina.
Mas,
a constatação do evento, em si, não explica e muito menos justifica os fatos;
nem tampouco a covardia é o contraponto adequado à temeridade. Entre uma e
outra, há a coragem. A situação se assemelha a um pesadelo em que precisamos
reagir, pedir socorro, mas o grito está contido, amordaçado no corpo, por um
sonho profundo. Em certos momentos, é imperioso soltar voz.
O
contexto é o seguinte:
1)
Interesses particularistas desde sempre tomam conta do Brasil e, neste momento,
não há força capaz ou disposição para enfrentá-los. Em pouco menos de um mês,
eventos em série têm submetido e emparedado o novo governo, mais paciente das
circunstâncias do que ator da história;
2) A
capacidade de enforcement do governo Temer tem se mostrado baixíssima; o
presidente e sua equipe ainda não conseguiram se posicionar estrategicamente de
modo a fazer valer sua vontade e conduzir o processo, como as circunstâncias
exigem — de recuo em recuo, o governo parece andar de costas;
3) Os
pronunciamentos do presidente interino são formais, racionais, rebuscados e
solenes — em excesso. Não comunicam de modo superior e eficaz a natureza e a
profundidade do problema que se vive; não estabelecem elos com o todo social;
não ousam pelo menos constranger parte, que seja, dos interesses corporativos.
A
literatura sobre o corporativismo é farta, o problema é complexo; disse certa
vez Sérgio Buarque de Holanda que “no Brasil, a democracia sempre foi um
lamentável mal-entendido”. Há tempos se sabe que, consolidando privilégios como
se fossem direitos, esses grupos deturpam o sentido de igualdade; retiram renda
e poder da maior parte da população.
Numa
sociedade complexa e fragmentada, é natural que os diferentes interesses se
manifestem; é mesmo justo que as minorias queiram assegurar direitos;
defenderem-se de uma espécie de “ditadura da maioria”. Enquanto isto não
perverter o processo, não há mal algum.
Mas
a minoria não deveria ser, afinal, mais forte e importante que a maioria; num
processo de negociação ela, a minoria – os mais diversos e fragmentados grupos
— pode e deve garantir respeito e tolerância às suas particularidades, mas de
modo algum isto acarretaria submissão do interesse geral ao particular; do mais
ao menos.
“De
forma que, ainda que não deva comprar todas as brigas de uma vez – pela
fragilidade intrínseca do poder e do mandato que recebeu –, Michel Temer corre
riscos: livra-se da espada de Dâmocles sobre sua cabeça, no Senado; mas,
sujeita-se à guilhotina da opinião pública. A Operação Lava Jato surge neste
contexto como mero carrasco”
Respeito
à diversidade é fundamental, mas não deve implicar na hegemonia de grupos
fragmentados sobre o todo. A exceção não deve se transformar em regra
simplesmente – ou fundamentalmente – porque a minoria se mobiliza mais, é mais
articulada, mais aguerrida e impositiva que a sociedade desorganizada.
Instituições
servem para reconhecer direitos específicos, mas também para garantir o
interesse de todos; servem para defender a liberdade dos particularismos, mas
sobretudo para impedir que a democracia degenere por um regime de oligarquias e
de grupos que submetem o cidadão comum; que comprometem o equilíbrio geral e
atropelam o futuro de todos.
Todavia,
grupos dessa natureza se incrustam no sistema político. Por seu poder de
mobilização, ao mesmo tempo cooptam e são cooptados por partidos, por governos
e, ao fim, pelo Estado – garantem um bom cabedal de votos, a principal moeda de
troca, na compra do poder.
Ao
lado do clientelismo, isto sempre houve no Brasil, não é de hoje e nem do ontem
mais imediato. Mas é possível que com o PT no poder tenha-se agravado a
situação, pelo forte componente corporativista da legenda. A democracia
“basista” do petismo rapidamente evoluiu para defesa de interesses “setoriais”.
O
Congresso Nacional é de certo modo um lócus onde esses grupos estão instalados
e de lá controlam o Poder Executivo: ruralistas, industriais, evangélicos,
sindicalistas, artistas, o agora novamente chamado “Centrão” — este, menos por conciliação de extremos do
que por configurar um núcleo de negócios e interesses específicos.
Enfim,
uma vasta gama de grupos que, antes de compreenderem e defenderem o interesse
do país – de alçar o longo prazo –, se debruça em questões mais imediatas e
particulares, mesquinhas; desvencilhadas da sociedade, até mesmo da realidade.
No momento em que o país amarga um desemprego de quase 12 milhões de pessoas, o
governo distribui recursos para os seus. Não faz muito sentido, mas, pior que
isso, não pega bem.
Ao
ceder, o presidente confina-se ao gueto, arrisca-se perder – ou jamais
conquistar – a interlocução com a sociedade mais ampla, desorganizada e
vulnerável que, desde sempre, o olha com evidente desconfiança, mas que seria
seu principal suporte
Com
efeito, se interpor a força das corporações não é tarefa simples, menos ainda
agradável. Na política – sobretudo, na política pequena em que o país se enreda
–, se indispor com grupos fortes e organizados é bom negócio, traz esses
desgastes. Mas, daí até ceder em uma série de aspectos cruciais para o
interesse geral da sociedade é outra coisa: acarreta na perda do apoio
essencial, das ruas.
A
menos que seja tão somente um mero representante desses grupos restritos, o
governante que age deste modo tende, no longo prazo, a ser sugado por esses
interesses, que ao final jogarão no lixo o bagaço de poder que ainda restar.
Há, na história, pencas de presidentes que acabam, assim, abandonados pelos
grupos e pelo povo.
De
forma que, ainda que não deva comprar todas as brigas de uma vez – pela
fragilidade intrínseca do poder e do mandato que recebeu –, Michel Temer corre
riscos: livra-se da espada de Dâmocles sobre sua cabeça, no Senado; mas,
sujeita-se à guilhotina da opinião pública. A Operação Lava Jato surge neste
contexto como mero carrasco.
Temer
parece se sentir na obrigação de saldar dívidas de jogo, que assumiu durante o
processo de impeachment, e que propiciaram os votos que afastaram Dilma
Rousseff. O sistema político, em virtude disto, enfia-lhe goela abaixo tudo o
que deseja: cargos, verbas, aumentos salariais e até a imposição de um líder –
que deveria ser do Governo e não da Câmara.
Contudo,
ao ceder, o presidente confina-se ao gueto, arrisca-se perder – ou jamais
conquistar – a interlocução com a sociedade mais ampla, desorganizada e
vulnerável que, desde sempre, o olha com evidente desconfiança, mas que seria
seu principal suporte. Isto faz esmaecer a ilusão e a rala esperança que vários
outros setores cultivavam com o afastamento de Dilma.
Sim,
houve para toda a gente – perdedores ou vitoriosos – um custo do impeachment,
se não valer a pena por que continuar arcando com o desgaste?
Carlos Melo é cientista político e professor do INSPER
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A
incapacidade de enforcement – o
executar, o fazer valer uma determinação –, às vezes, deriva mais da prática de
conceder em série do que do contrário. Alguns governos cedem porque não detém
poder. Mas, em outros, é possível compreender, o que se dá é o contrário: o
governo cede e são as inúmeras concessões que fragilizam o poder.
Como
já disse, combater isto não é simples, sobretudo, com a tradicional força de
corporações de toda natureza que há no Brasil. Por isso, pelo menos dois
instrumentos são indispensáveis para romper esse ciclo: 1) projeto mais amplo que vislumbre a totalidade do país e seu
futuro; 2) coragem, disposição e
habilidade de vocalizá-lo, persuadindo forças mais gerais, capazes de
constranger interesses menores e varrer
singularidades.
Michel
Temer ainda não conseguiu externar esses requisitos: não vocaliza o cidadão
comum e a esperança. Mais fala aos grupos do que à nação. Vai se transformando
num avanço para os particularismos, mas — aos olhos da sociedade – fica a
imagem do retrocesso, que aparenta dar dois passos atrás para andar um adiante;
devagar, voltará ao longe? Entende-se seus limitações, mas é para frente, com
certa ousadia, que se anda.
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