ILUSTRAÇÃO: GUSTAVO DUARTE |
“QUANDO OUSASTE FOSTE HOMEM!”
Folha de S. Paulo –
20/06/2016
(Por Luiz Felipe Pondé) Quem
disse essa frase que está no título acima? Se você conhece a obra do autor em
questão, já sabe quem disse essa famosa frase. Ela foi dita num contexto de uma
peça em que a personagem feminina, uma das mais famosas da literatura clássica,
fala para seu marido, que naquele momento se encontra reticente em levar
adiante o plano que apresentara a ela momentos antes.
Essa
frase carrega em si uma concepção de homem (gênero) que sempre foi muito comum
em nosso imaginário: aquele, como diz nossa famosa personagem, que tem coragem
de seguir seu desejo e suas ambições.
Essa
mulher diz essa frase porque seu marido recuou num projeto específico, que
faria dele rei. Mas qual concepção de homem é esta? Trata-se da concepção
segundo a qual um homem é medido pela ousadia e coragem acima de qualquer limite
moral.
O
filósofo Adam Smith, no século 18, temia que o avanço da sociedade comercial (o
que alguns chamam de sociedade de mercado, outros de capitalismo) destruísse as
chamadas virtudes guerreiras do homem, fazendo dele um "contador de
dinheiro" sem ambição nenhuma além de acumular riquezas materiais por meio
dos negócios.
Interessante
observar que muitos estudiosos da pré-história levantam hipótese semelhante
quando da nossa passagem da condição de caçador coletor para a de agricultor,
preso à terra, sem poder "ser ousado", sempre escravo da colheita a
vir. Na condição de agricultor, o homem tornara-se temeroso dos riscos de
perder todo o cultivo sob a ameaça de invasores. A perda da mobilidade em nome
do "patrimônio" teria feito o agricultor mais covarde do que o
caçador coletor.
No
mundo contemporâneo, o processo de acovardamento do homem é crescente. Mas isso
é apenas consequência da civilização enquanto tal, no seu modo crescente de
domesticação dos afetos e dos humores.
De
volta à nossa personagem feminina. Sua frase magnífica cobra de seu marido que
volte à ousadia que demonstrara quando de sua ideia "genial" de matar
o rei Duncan da Escócia, a fim de tomar seu trono. Já sabe de qual mulher estou
falando?
Seu
marido, guerreiro reconhecido como virtuoso pelo próprio rei (estamos na Idade
Média), se pergunta, afinal, por que ele não poderia ser rei, uma vez que era
absolutamente acima da média em comparação aos outros homens à sua volta.
Momentos
depois, quando o rei Duncan se encontra na casa do casal em questão, o marido
de nossa famosa personagem, em conversa com ela, demonstra dúvidas com relação
ao plano inicial de matar o rei e tomar seu trono. Demonstra ter medo das
consequências do seu ato.
Sim,
estamos falando do casal Macbeth, da peça homônima de Shakespeare. A frase em
questão é dita pela Lady Macbeth diante das dúvidas de seu marido quanto a
levar a cabo o assassinato do rei.
A
frase "quando ousaste foste homem" representou para a fortuna crítica
o reconhecimento dessa mulher como a maior vilã da literatura ocidental, talvez
equiparada a Medeia, na tragédia homônima, com a diferença que Medeia, ao
assassinar seus filhos com Jasão, tinha pelo menos a desculpa do ciúme e do
desespero diante do fato de ser trocada pela princesa, mais jovem e mais bela,
que ela também matará. O ódio de Medeia é de alguma forma compreensível.
A
fala de Lady Macbeth não teria a mesma justificativa. Ela, em vez de apoiar seu
marido em suas dúvidas morais, se desespera diante da aparente covardia dele.
Ao
dizer que ele era mais homem quando ousava, Lady Macbeth falava da mais atávica
das expectativas de uma mulher para com seu homem. Claro que, diante da
monstruosidade que seu marido realizará, ela se arrependerá do que disse.
Nunca
achei a Lady Macbeth um monstro. Sempre vi nela apenas uma expectativa feminina
para com a masculinidade, expectativa esta já há muito inexistente.
O
mundo contemporâneo jamais produzirá uma Lady Macbeth. Não haverá mais
quaisquer expectativas quanto à masculinidade. O conceito caducará. Restará
apenas o estuprador, o frouxinho e o menino bonzinho. O futuro próximo nos
legará uma vida pequena, farta de cacarecos e cheia de tédio.
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