Depois da farra... Heitor dos Prazeres/ Enciclopédia Itaú Cultural |
REGRAS
DE OURO
Foi Temer quem, ao contrário das expectativas de sua equipe
econômica, se acomodou às pressões do Legislativo,
mesmo antes do Joesley Day
Por
Carlos Melo
Blog do Carlos Melo
09/01/2018
– 09:49
Com
justificados cuidados com a qualidade do ambiente macroeconômico, a chamada
''regra de ouro'' consiste num instrumento que impede o governo federal de
fazer mal a si mesmo, a seu sucessor e ao país, proibindo-o de emitir dívidas
em montantes superiores aos investimentos. O objetivo é dar travas à natural
''bondade com o dinheiro dos outros'', ao irresponsável populismo fiscal, com
elevação de despesas correntes que os governantes adoram.
Esse
tipo de mecanismo é simples e racional e, bem ou mal, expressa segurança
indicando que, por pior que seja o governo, por mais perdulário, sua ação
deletéria ficará sob limites mínimos, forçando-o à economia e ao ajuste:
governar significa dirigir com cuidado e zelo. Quando não o fizer, e a
sociedade assim permitir, se verá obrigado a elevar impostos tão logo cessem
aumentos de arrecadação — ou quando as despesas crescerem em ritmo maior que a
arrecadação.
Trata-se,
antes de tudo, de uma regra de bom senso; de um ponto de vista objetivo,
ninguém pode ser contra: a administração pública tem obrigação de se pautar, de
fato, pelo comedimento e pela responsabilidade fiscal. Então, é uma prática
justa e respeitosa com o dinheiro público; de certo modo, um procedimento óbvio
e banal que, no entanto, no Brasil, precisou constar da Constituição.
“Foi
a área política do governo Temer — fisiológica, assustada
e
fraca — que desconstruiu, aos poucos e sistematicamente,
as
regras e os cuidados fiscais que ofereciam como alternativa
à
Dilma, derretendo, o ouro da credibilidade prometida”
Impedido
— ou incapaz, não importa — de fazer sua parte no controle dos gastos, é
exatamente isto o que o governo do presidente Michel Temer pretende mudar.
Não
custa lembrar que foi Michel Temer quem, ao assumir o lugar de Dilma Rousseff,
concedeu aumentos ao funcionalismo; foi o presidente quem aceitou renegociações
de dívidas (REFIS para todos os gostos), liberou emendas a granel e no atacado
para manter o mandato; concedeu privilégios a bancadas setoriais, capitulou
diante do interesse de estados e municípios, evitou o quanto pôde enfrentar
corporações na questão previdenciária — o faz somente agora, de modo oblíquo e
desesperado, quando já parece tarde.
Foi
Temer quem, ao contrário das expectativas de sua equipe econômica, se acomodou
às pressões do Legislativo, mesmo antes do Joesley
Day. Foi a área política de seu Governo — fisiológica, assustada e fraca —
que desconstruiu, aos poucos e sistematicamente, as regras e os cuidados
fiscais que ofereciam como alternativa à Dilma, derretendo, assim, o ouro da
credibilidade prometida.
Isto
tudo posto sobre a mesa, é claro que a eliminação da ''regra de ouro'' acaba
por ser natural, caminho previsível diante de trajetória errante. Não traz
surpresas.
Contudo,
implicará em sobressaltos na economia; afinal, quem pode dar cavalos-de-pau
desse tipo, pode muito bem ultrapassar outros limites. Mudanças assim, elevam a
insegurança em relação às regras, às instituições e à credibilidade dos atores,
tornando tudo muito mais instável, por incerto e inseguro.
Quem,
num ambiente destes, comprometeria recursos desconfiando que tudo pode, de
repente, mudar ao sabor das conveniências políticas, onde governos não ajustam
às regras ou, antes, conciliam interesses com corporações e as alteram?
Quadro
como este só faz sentido mesmo no campo da política brasileira, pois sua regra
de ouro é bem outra. Para a maioria dos políticos, manter o poder e, se
possível, ampliá-lo é, este sim, o fundamento básico que de qualquer cartilha.
Tanto mais quando — e este é o caso — a situação implica, acima de tudo, salvar
a própria pele, preservar o pescoço, escapando de processos na Justiça e, até,
da possível cana dura.
Carlos Melo é cientista político e professor do Insper Foto: Helcio Nagamine/Fiesp |
Dizem
que os cães lambem a própria virilha pelo mais básico e elementar princípio da
anatomia: eles o fazem simplesmente porque podem, porque é possível. De modo
que fazer ou não, obedecer ou não, em política, não depende apenas de regras ou
critérios abstratos de bom senso; dependem, antes, de poder ou não poder. E
Michel Temer, ao contrário de sua antecessora eleita, pode.
Possui
condições mais favoráveis para desviar-se de qualquer boa prática definida pela
lógica econômica: o mercado financeiro lhe é mais condescendente, a ortodoxia
econômica mais amigável e tolerante, os tribunais menos rigorosos, o Parlamento
mais aberto à ''negociação'', a sociedade mais apática. Tudo dá ao governo
Temer a elasticidade dos cães, mencionada no exemplo acima. Faz porque pode.
Somente
os custos de reputação de sua equipe econômica poderão conter esse processo.
Fora disto, estaremos no campo do ''Poder'' — na língua portuguesa, verbo e
substantivo. O Poder, a dor e delícia da política; é eloquente, fala e cala por
si. Interessante constatar como o governo Temer é, paradoxalmente, fraco e
poderoso. Fraco, por sua fragilidade intrínseca, sua impopularidade explícita;
poderoso por conta da condescendência de atores econômicos; da permissividade
que lhe é garantida pela perplexidade da crise. Que mais dizer?
Nada
mais. “Biquínis e mensagens devem ser curtos para aguçar o interesse e longos o
suficiente para cobrir o objeto” (Carlos Heitor Cony). É isso aí: o que não
está à mostra fica na imaginação.
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