Anitta: "símbolo" da cultura nacional Foto: Manuela Scarpa - Brazil News |
ANITTA E A REPÚBLICA DOS RASTAQUERAS
A decadência cultural do país é inquestionável.
A ignorância se transformou em política oficial.
Quanto mais medíocre, melhor
Por Marco Antonio Villa
O Globo – 09/01/2018
O Brasil vive uma crise de identidade cultural. Ao longo do século
XX, foi recorrente a busca incessante de interpretações do nosso país. A grande
migração do Nordeste para o Sudeste e os deslocamentos do campo para a cidade
transformaram radicalmente o país. O nascimento das primeiras metrópoles e suas
profundas contradições sociais e políticas fomentaram a necessidade de
compreender o momento histórico. Tudo era novo, e as antigas leituras não davam
conta das transformações que estavam ocorrendo em ritmo acelerado. O velho
ufanismo do Conde de Afonso Celso era ridicularizado. O Brasil moderno
necessitava da crítica, e não da apologia despolitizada do passado e do
presente.
Na literatura, no cinema, nas artes plásticas, na música foi sendo
construída a nossa identidade cultural, produto complexo, contraditório, mas
que possibilitou estabelecer diálogo entre as diferentes regiões do país, as
classes sociais, os desafios políticos e a elite dirigente. A cultura
brasileira tinha uma presença no mundo ocidental. Dialogava com o que havia de
mais moderno. Em algumas áreas, acabou se transformando em referência para
outras culturas.
Atualmente, o panorama é muito distinto. A crise de identidade
cultural pela qual passamos é a mais profunda da nossa história. Hoje, nada ou
quase nada nos une. Somos um país fragmentado, dividido. Não há diálogo na
música, na literatura, no cinema, nas artes plásticas. A cultura brasileira
nada conta para o mundo.
“Nunca tivemos uma elite tão rastaquera como a atual.
Despreza a cultura. Não se identifica com os clássicos
ocidentais. Acha o máximo matricular seus filhos
em escola bilíngue — somente duplicam a ignorância”
Nesta conjuntura, é possível compreender como algumas figuras
caricatas tomaram conta do cenário cultural. A cantora Anitta é o melhor
exemplo. É elogiada como um verdadeiro símbolo do Brasil contemporâneo. Uma
representante do país para o mundo. A música “Vai, malandra” já foi chamada de
novo hino nacional. O reacionarismo da letra (falar em versos, aí já é demais),
a desqualificação da mulher, a idealização da favela (é favela mesmo;
comunidade não passa de uma tentativa de transmudar pela palavra uma vergonha
nacional, aceitar a precarização da moradia e das condições de vida de milhões
de brasileiros) é dado de barato, como se fosse algo absolutamente irrelevante.
Foi até chamada para cantar o Hino Nacional no último Grande Prêmio de Fórmula
1, em Interlagos — seguindo este caminho, logo teremos como intérpretes
Ludmilla ou Pabllo Vittar. No réveillon, na Praia de Copacabana, foi
considerada a grande estrela. Brindou o público com frase de rara profundidade
filosófica, como uma Hanna Arendt dos trópicos: “Vocês acharam que eu não ia
rebolar a minha bunda hoje?”
A decadência cultural do país é inquestionável. A ignorância se
transformou em política oficial. Quanto mais medíocre, melhor. Tem de ser
rasteiro para ser aceito, fazer sucesso. O Brasil virou a República dos
Rastaqueras. No país da Anitta, é indispensável dizer sim, sempre dizer sim. Há
o medo manifesto de ser hostilizado por defender uma outra visão de mundo. Os
radicais dos anos 1960, hoje em idade provecta, preferiram aceitar passivamente
o papel de coadjuvantes. Não perceberam o ridículo. Pior, chancelaram com entusiasmo
a cultura da ignorância. Tudo para não perder o proscênio. Em busca da eterna
juventude, agem como Peter Pans tupiniquins.
Como chegamos a este ponto de degradação? O desaparecimento de um
pensamento crítico pode explicar este terrível cenário. A reflexão, fruto da
exaustiva pesquisa, desapareceu. Culturalmente — mas não só — o país perdeu o
rumo. Paradoxalmente, nunca existiram no Brasil tantas secretarias — estaduais
e municipais — dedicadas formalmente à cultura. São centenas. Mas na República
dos Rastaqueras, elas servem somente como moeda de troca para garantir a
“governabilidade” das prefeituras e governos estaduais.
O Brasil acabou se transformando em recebedor passivo do que há de
pior da cultura ocidental, especialmente a americana. Reproduz de forma
caricata as manifestações culturais (além do racismo negro) dos setores ditos
marginais dos Estados Unidos — que foram mercantilizados a peso de ouro pela
indústria cultural. Ao invés da antropofagia cultural, temos o mimetismo
caricato.
Marco Antonio Villa é historiador Foto: YouTube |
Não é possível atribuir ao conjunto da cultura ocidental a
mediocridade brasileira. Poderíamos importar muita coisa melhor. Mas por que
não o fazemos? Em parte, deve-se à elite econômica e política. Nunca tivemos
uma elite tão rastaquera como a atual. Despreza a cultura. Não se identifica
com os clássicos ocidentais. Acha o máximo matricular seus filhos em escola
bilíngue — somente duplicam a ignorância em duas línguas. Quando viaja, evita
os museus. Livrarias? Foge delas como o diabo da cruz. Olha mas não vê o
produto de uma civilização. Quer é fazer compras.
O Brasil não tem nenhum museu que possa se aproximar de um congênere
europeu. Os nossos são pequenos, pobres. Evidentemente que não seria o caso de
termos um Hermitage, mas o país que está entre as maiores economias do mundo
não pode se contentar com o que temos. E as bibliotecas? Pífias. Os acervos são
restritos e estão desatualizados. E os grandes teatros?
Este triste panorama é produto da crise que vivemos, uma crise
estrutural. A República está sem rumo. Em uma linguagem mais direta: o país
está uma bagunça. Para os doutores Pangloss de plantão, tudo vai bem. Resta,
então, cantar: “Vai, malandra, an an/ Ê, tá louca, tu brincando com o bumbum/An
an, tutudum, an an/Vai, malandra, an an/Ê, tá louca, tu brincando com o
bumbum/An an, tutudum, an an.” Ah, bons tempos quando Anita era a Garibaldi.
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PARA QUEM GOSTA DE PORCARIA:
"VAI, MALANDRA"
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