Adão e Eva: expulsos do Éden |
SE EU SOUBESSE...
Afinal de contas, o que nos havia tornado humanos?
Teria sido a alma dada por Deus, essa inventora
da consciência e da linguagem articulada, ou o tabu do incesto?
Por Roberto DaMatta
O Globo – 17/01/2018
Bebíamos o terceiro ou quarto uísque quando surgiu no infinito
horizonte dos nossos copos vazios uma questão burguesa: afinal de contas, o que
nos havia tornado humanos? Teria sido a alma dada por Deus, essa inventora da
consciência e da linguagem articulada — ou o tabu do incesto? Teria sido a
proibição de comermos a nós mesmos, como tendem a fazer a democracia
igualitária e o globalismo desenfreado?
Todos falaram, mas eu fiquei com aquele que soltou o seguinte:
“Somos humanos porque temos o condicionante virtual, o ‘se’ da frustração e do
arrependimento. Ah! Se eu soubesse, ou pudesse...”
Eis algumas coisas que ouvi.
Roberto DaMatta é antropólogo
|
Se eu soubesse o que hoje sei, eu não sei se estaria escrevendo
estas linhas... Se eu soubesse que o “se eu soubesse” é algo recorrente — pois
sempre pensamos saber mais do que sabemos —, eu não teria ficado tão magoado
com meu pai... Se eu soubesse que a democracia americana ia dar em Trump, disse
um tal de Alexis Charles-Henri-Maurice Clérel de Tocqueville, eu teria refeito o
meu livro “Democracia na América”...
Se eu soubesse que insistir em pegar na mão dela ia me custar o emprego, eu
teria ficado fiel ao meu inútil voto de castidade... Se eu soubesse que tudo o
que eu fiz e ainda vou fazer vai ser fatalmente esquecido, eu teria pensado
mais em escrever menos... Se eu soubesse o resultado da Mega-Sena, eu (diz um
lado meu) estaria longe daqui...
Se eu soubesse que o tempo realmente passa, eu
teria terminado o livro que jamais vou escrever... Se eu soubesse que roubar
era sinônimo de “cuidar do povo”, eu teria me suicidado politicamente... Se eu
soubesse que a descoberta do planeta como um todo — o planeta visto de fora
para dentro — ia me dar a certeza de que estamos matando o mundo, eu não seria
otimista... Se eu soubesse que ser professor seria viver numa luta
decepcionante contra a indiferença do saber em toda a parte, mas sobretudo no
Brasil, eu teria — mesmo assim — sido professor... Se eu soubesse que o meu
medo do escuro ia estar sempre ao meu lado, eu teria acendido a luz...
Se eu
soubesse que ia construir uma tribo, eu jamais saberia como a leveza do papel
de avô compensa amplamente o papel pesado de pai... Se eu soubesse que iria ser
vítima das intrigas humanas que, por sua vez, são o resultado não previsto das
intrigas que os intrigantes realizam nas suas próprias cabeças, eu teria vivido
com serenidade as calúnias assacadas contra mim... Se eu soubesse que, mesmo
sendo o filho mais velho, eu poderia ter mais latitude para errar, burlar,
brincar e pecar, eu talvez tivesse sido um artista — medíocre, sem dúvida — um
ser mais alinhado com os encontros decisivos entre a força da vida e o silêncio
dos túmulos... Se eu soubesse Latim, Francês e Matemática como meus professores
gostariam que eu aprendesse, eu seria engenheiro ou militar...
Se eu soubesse
que a ambição humana é tão ou mais poderosa que os protocolos, eu estaria menos
preocupado com um mundo que exige muito menos de mim do que eu dele... Se eu
soubesse de memória tudo o que ouvi dos meus professores, eu estaria num
hospício... Se eu soubesse que não saber é uma condição da vida, eu não teria
consultado aquela cartomante famosa que tinha como clientes diplomatas, altos
funcionários, frades e materialistas... Se eu soubesse que despertava tanta
inveja, meu sentimento de culpa caberia num dedal... Se eu soubesse que o mapa
social do Brasil estava traçado antes do meu nascimento, eu não teria me
esforçado tanto — teria me esforçado muito mais...
Se soubesse tudo, eu não
teria que aprender nada... E se eu não soubesse nada, como foi o caso, eu não
ficaria tão decepcionado em saber tão pouco... Se eu soubesse puxar o saco dos
poderosos, eu teria ido muito mais longe... Se eu soubesse que ele ia morrer
subitamente, eu lhe diria o quanto eu o amava todo os dias... Se meus pais
estivessem vivos, eu iria perguntar tudo sobre a vida deles... Se eu soubesse
que o passado jamais volta, exceto pelos bons momentos do presente, eu não
estaria firme neste pedaço de jornal...
Nenhum comentário:
Postar um comentário