Há quem sinta saudade do império ou de regimes totalitários e busque um salvador da pátria |
A
DEMOCRACIA COMO PROBLEMA
Sofremos
a nostalgia do império e dos regimes ditatoriais
que
o imitaram. Neles, não havia bate-boca, imprensa
livre,
denúncias negociadas, juízes independentes
Por
Roberto DaMatta
O
Globo – 11/01/2018
Todo
regime democrático tem problemas, e prova mais clara deste ponto é a crise
presidencial da primeira democracia de massa do planeta, a americana. Qualquer
investigação vai demonstrar que o regime democrático moderno não pode ser
reduzido às suas dimensões econômicas, mas deve ser lido, como ensinou Marcel
Mauss, como um “fato social total” — a democracia é um estilo de vida que afeta
todos os espaços de nossas vidas. Ele produz tanto um Roosevelt e um Obama
quanto a KKK e um Trump.
Motivada,
como compreenderam Marx e Polanyi, pelo desejo desabrido (e legitimado como
virtude e talento) de ganhos e empoderamentos infinitos, ofertados num mercado
ou palco, a dinâmica democrática seria sempre sujeita a crises ou vista como
burla.
Para
tanto, basta lembrar que a democracia liberal é o único regime aberto à
proposta de sua destituição, conforme vimos na Europa dos socialismos de
esquerda e de direita. Tais desvios são o resultado de um paradoxo: a
democracia liberal é o único regime explicitamente aberto à autocorreção.
Roberto DaMatta é antropólogo Foto: YouTube |
No
caso do Brasil, o experimento democrático tem promovido um permanente clamor
contra a desordem, a roubalheira e o aumento da desigualdade — questões a serem
sanadas pelo retorno da boçalidade dos salvadores da pátria. Ou seja:
reestabelecendo privilégios, impedindo acabar com a consciência de
inferioridade, com a aristocratização por meio do Estado, com um sistema
educacional destinado a garantir a desigualdade; e, como faz a elite,
malandramente mantendo um sistema político alinhavado por semi-ideologias e
abençoado por amizades instrumentais. Tudo isso produziu uma estratificação
social impecável, na qual todos têm um lugar e todos sabem do seu lugar. Para o
nosso lado mais atrasado, o ideal seria não ter mais que lembrar aos inferiores
(que pensam serem nossos iguais) com quem eles estão falando!
Como
dar liberdade aos seus inimigos, dizem os reacionários de direita; e como,
dizem os de esquerda, ter essa liberdade que rompe tabus e leva a
desigualdades?
Sofremos
a nostalgia do império e dos regimes ditatoriais que o imitaram. Neles, não
havia bate-boca, imprensa livre, denúncias negociadas, juízes e procuradores
independentes, e a crise, cujo incômodo maior é a constatação da corrupção
estrutural e contraditória dos eleitos.
Nos
impérios, governa-se por “direito divino”. Deus abençoava o governante de
sangue azul, cujo poder transcendia às forças deste mundo. Pensar que grandes
impérios tenham tido como base dimensões fora deste mundo permite uma visão
mais clara da revolução republicana, a qual abriu o sistema de poder a todos os
seus membros que não são mais acólitos ou súditos de ninguém, exceto de si
mesmos. Nela, a família imperial não é mais a dona do Brasil ou a
personificação da civilização europeia depauperada nos tristes trópicos. Agora
— eis o desafio insuportável — somos administradores de nós mesmos. A chamada
“coisa pública” pertence a todos e não pode ser apropriada nem abandonada por
ninguém. O traço distintivo das democracias não é uma casta, classe, partido,
família ou casa, mas consciências individualizadas e livres.
“As
democracias são odiadas por partidos totalitários
e
por boçais que não suportam dúvidas”
A
passagem de um todo abençoado por Deus à sua parte mais insignificante e mortal
— o ser humano individualizado, republicanamente visto como um cidadão detentor
de direitos inerentes à sua condição — é um feito de extraordinária coragem e
um projeto capaz de desafiar não somente reis e ditadores, mas os deuses!
Não
é por acaso que as democracias sejam muito mais predispostas a terem problemas
do que a preveni-los. Não é também por acaso que elas são odiadas por partidos
totalitários e por boçais que não suportam dúvidas.
A
globalização inventou sua ideologia. Ela põe em foco o planeta como um sujeito
do individualismo. Se não há mais limites transcendentais, há o limite
planetário, que é a nossa totalidade — o nosso palco.
O
Brasil vive num oceano de crise, mas o que fazer com o nacionalismo
isolacionista de Donald Trump, cuja fúria pode destruir o planeta e cuja
proposta de censurar um livro que o critica como presidente perturba a mais
estável experiência democrática do mundo?
O
retorno do proibir como um direito dos que um dia foram proibidos é bem
conhecido entre nós. Bem como a convivência com uma pervertida e insuportável
contradição entre atores e papéis. Não nos surpreenderia descobrir um santo que
jamais acreditou em si mesmo porque sabe de sua salafragem.
O
globalismo é tão bipolar quanto as múltiplas éticas brasileiras. A América vai
ficando mais parecida conosco e — queiram as fadas — nós com ela, mas não em
tudo...
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