Melo: Cada um tem o Churchill que merece |
A
HORA MAIS ESCURA
Churchill
foi uma liderança política que carregava: valores,
convicção
e coragem para defendê-los; sensibilidade política
e
capacidade de comunicação; visão de futuro, articulação,
paciência
e estratégia. E, ao lado da rabugice, cultura para
suportar
um humor ferino e destruidor de adversários
Por
Carlos Melo
15/01/2018
Não
haverá spoiler, fiquem tranquilos; o
final do filme será preservado. Mas, a história é conhecida. Trata-se do
período logo após a primeira condução de Winston Churchill ao cargo de primeiro-ministro
do Reino Unido, quando teve que convencer o establishment inglês que não
convinha fazer a paz com Hitler. Refiro-me a ''O Destino de Uma Nação'', em cartaz nos cinemas do Brasil — o
título em inglês parece-me mais interessante: “Darkest Hour”.
Como
se diz, é um ''filmaço'' e Gary Oldman — irreconhecível — merece, sim, o Oscar
que deverá ganhar. Claro, há um ou outro trecho romanceado, coisa para
emocionar a plateia e dar cores ainda mais extraordinárias ao herói. De todo
modo, Churchill foi, de fato, um personagem extraordinário.
Sobre
o período e o personagem, já havia lido muita coisa. Algo rápido e interessante
é ''O Duelo: Churchill x Hitler: 80 dias
cruciais para a Segunda Guerra Mundial'', de John Lukacs (Jorge Zahar
Editor, 2002). Fica a recomendação.
Tratou-se
mesmo de uma encruzilhada para a humanidade e os ingleses estiveram muito
próximos de tomar o caminho errado — embora, aparentemente, o mais conveniente.
Churchill,
por sua vez, era um personagem folclórico: desacreditado, posto que
responsabilizado por retumbante fracasso na Batalha de Dardanelos, em Galípoli,
na Turquia, durante a Primeira Guerra Mundial. Acompanhava-lhe a fama, não
injustificada tampouco mentirosa, de temperamental e beberrão.
Foi
escolhido primeiro-ministro a contragosto do Partido Conservador e do Rei
George VI (este, igualmente, uma figura ímpar). Acreditava-se que não durasse
muito. O próprio Hitler esperava por isso — possuía informação dos ingleses.
Neville
Chamberlain, primeiro-ministro anterior e homem forte do Partido Conservador,
ao lado de Edward Wood (conde de Halifax), o preferido para suceder a
Chamberlain e secretário de Relações Exteriores, eram favoráveis ao diálogo e à
paz com os alemães. Subestimavam Churchill e, no meio político, possuíam muito
mais força e prestígio que ele. Enfim, questão de tempo.
Aqueles
dias, possivelmente, expressam um dos mais elevados momentos da liderança
política da história. Estudando Hitler e o nazismo ao longo dos anos, Churchill
possuía convicção diferente de seus pares: ''Não se negocia com um tigre quando
você está com a cabeça dentro de sua boca''. Diante de seus valores, era
imperativo resistir. Em virtude disso, não se furtou ao contraditório,
enfrentou, debateu, correu riscos.
Exageros
à parte no filme, o fato é que realmente percebeu, antes de todos, o sentimento
da nação, vocalizando-o em discursos. Resistindo aos adversários internos,
refugiou-se nas palavras e, ao final, unificou a população e os políticos.
Carlos Melo é cientista político e professor do Insper |
Depois,
ao tempo em que enfrentava o fantástico poderio militar alemão, mobilizou
energias para atrair os Estados Unidos para o centro do conflito europeu;
aguardou o rompimento do pacto entre Hitler e Stálin, de modo a que os alemães
se vissem forçados a lutar em duas frentes, o que os enfraquecia
significativamente. Venceu a guerra e deu outro rumo ao mundo.
Humano,
claro, possuía uma série de defeitos; seus biógrafos confirmam que seu
temperamento tornava dura a vida dos que o rodeavam; liberal e ao mesmo tempo
conservador, não foi assimilado pela esquerda política e cultural, que ainda o
vê com preconceito.
Mas,
o mais importante, e que os parágrafos acima querem demarcar, são as
características da liderança política que carregava: valores, convicção e
coragem para defendê-los; sensibilidade política e capacidade de comunicação;
visão de futuro, articulação, paciência e estratégia. E, ao lado da rabugice,
cultura para suportar um humor ferino e destruidor de adversários. Ao final, é
a soma de suas qualidades o que importa.
O
filme retrata apenas um pequeno período da vida do personagem; de fato, a
''hora mais escura'', numa tradução livre do título original. Não demonstra
que, ao final, Churchill foi estigmatizado pelos aliados americanos, sendo
praticamente afastado do centro das negociações pós-guerra, quando a Europa foi
repartida em áreas de influência.
Não
menciona que, finda a guerra, o Partido Conservador, de Churchill, perdeu as
eleições para os trabalhistas de Clement Attlee, que o sucedeu. Também omite
que Churchill escreveu às carradas, em quantidade superior a Charles Dickens
somado a mais uns tantos, sendo laureado com o Nobel de Literatura. Fracassos e
triunfos que o engrandecem.
“Estudando
Hitler e o nazismo ao longo dos anos, Churchill
possuía
convicção diferente de seus pares: ''Não se negocia
com
um tigre quando você está com a cabeça dentro de sua boca''’
Sob
muitos aspectos, dividido, o Brasil vive também sua ''hora mais escura'': não
há diálogo; o fenômeno das redes sociais traz aspectos inovadores à
participação, mas também faz crescer a intolerância. A cultura se defronta com
o ''politicamente correto'', numa transição que mistura intransigência e sanha
punitiva, muito a cima dos desejos de superação dos preconceitos e da
transformação social. A arte é questionada, num afã de censurá-la. A religião
penetra nas instituições.
Há
desemprego e enorme precarização do emprego; o quadro econômico é, no mínimo,
incerto. A violência cresce, facções de criminosos se expandem e ganham corpo
na política, inclusive. Febre amarela de volta; Saúde e Educação, bens de luxo.
A demografia do país passa por uma revolução, políticas públicas precisam ser
repensadas. Desigualdade e injustiça social; grupos de interesses perpetuarão
privilégios?
O
país precisa de reformas em todos os campos, nas mais diversas áreas. Só
conseguirá fazê-las se houver unidade, forjada na persuasão de argumentos que
falem às mentes e também aos corações; na visão de futuro e na capacidade de
comunicação dos governantes.
Num
ano eleitoral, a esperança deveria pulsar em torno da emergência de novas
lideranças; acender velas, dissipar o breu da hora mais escura. Mas, a história
dá saltos somente quando preparada e ainda não permite avanços. Por ora, somos
o que podemos ser. Cada um tem o Churchill que merece.
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