AINDA
CONY, INESGOTÁVEL
Há
mais de 40 anos, o crítico Otto Maria Carpeaux
advertia:
‘Esconde atrás da máscara de um cinismo
feroz
seu sentimentalismo inato’
Por
Zuenir Ventura
O
Globo – 10/01/2018
Carlos
Heitor Cony morreu deixando de propósito a imagem de que era pessimista,
cético, cínico e, como revelou no seu discurso de posse na Academia Brasileira
de Letras, anarquista. Gozador, deve estar se divertindo por ter conseguido que
acreditassem nisso. Mas será que esse Cony correspondia ao real, de carne e
osso? Pelo menos seu amigo Otto Maria Carpeaux achava que não. Há mais de 40
anos, o grande crítico advertia: “Cony esconde atrás da máscara de um cinismo
feroz seu sentimentalismo inato”.
Bastaria
lembrar o que o cronista expressou publicamente sobre Mila (*). Um trechinho:
“Foram 13 anos de chamego e encanto. Dormimos muitas vezes juntos, a patinha
dela em cima de meu ombro”. É difícil imaginar um cínico capaz de se enternecer
e chorar de saudade a perda de uma cadelinha.
A
mesma contradição se encontra nesse anarquista obediente aos rituais. Foi ele
quem revelou: “Estudei em seminário não por um sentido místico, mas porque a
liturgia me atraía”. Quer dizer: o que o fascinava nos dez anos de internato
não era a fé, mas os ritos da religião.
Dois
mecanismos foram importantes na formação de Cony. O primeiro, de compensação.
Aos 5 anos, quando começou a articular palavras, ele misturava letras, o que o
levou a se refugiar na escrita. Escrevendo, não trocava, por exemplo, o “g”
pelo “d” em “fogão” como fazia ao falar, provocando bullying dos colegas.
O
segundo mecanismo foi o de defesa — “um modo de não se deslumbrar” — e de
proteção contra o niilismo e o desespero. Caminhando sempre entre paradoxos,
ele às vezes se mostrava tão cético que parecia não acreditar nem no ceticismo.
Em
1958, Luiz Garcia e eu éramos editores do suplemento literário da “Tribuna da
Imprensa” de Carlos Lacerda, quando apareceu na redação um desconhecido com um
envelope: “São os originais de meu livro. Não sei se vale uma resenha”. Era
Cony, com o “Ventre”. Valia, e como.
Já
estava nesse romance de estreia com imagens fortes e uma inesperada
contundência de linguagem um pouco da dissonância que iria marcar sua vida e
obra — uma espécie de espírito de contradição que gostava de contestar
expectativas óbvias e de não se permitir estacionar numa posição ideológica.
Chegou a ser flagrado na esquerda, na direita e no centro, mas não por muito
tempo.
Uma
vez ele escreveu que, vizinhos de bairro, só nos encontrávamos nos aeroportos
ou fora do Brasil. Num desses encontros a caminho de alguma palestra, perguntei
que máscara ele ia usar na sua fala. Como não aceitava provocação nem de
brincadeira, retrucou: “Eu uso a máscara do pessimismo e você, a do otimismo.
Cada um se defende como pode da tentação contrária”.
À
sua maneira, ele concordava enfim com o diagnóstico de Carpeaux.
***
LEIA
A CRÔNICA “MILA”
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