OTÁVIO NUNES É JORNALISTA |
O COFRE DO SENADOR
(Por Otávio Nunes) O
senador Turíbio Cavalcanti acorda cedo e abre a janela de sua mansão. Sente-se
rejuvenescido com os primeiros raios de sol e o ar fresco e perfumado exalado
do seu vasto jardim. Tanta felicidade o incita a proferir um discurso em louvor
da natureza, mas nada diz por absoluta falta de quorum na sua casa. A empregada
deve chegar em pouco. Enquanto isto, o velho político senta-se a sua
escrivaninha para ler o jornal.
Turíbio
ainda é chamado de senador, embora aposentado das tribunas, onde defendeu em
quatro mandatos consecutivos, com muita abnegação, a conciliação dos interesses
do Estado com os do cidadão, mas sempre beneficiando a si mesmo e aumentado seu
patrimônio para ter uma velhice feliz e deixar seu legado à pequena prole dos
Cavalcanti. Vive sozinho após a morte da esposa e seu único filho mora no
exterior.
Sua
companhia mais próxima é a empregada Andrômeda, que entra em casa no momento em
que ele lê o editorial de seu jornal preferido, um diário mais que centenário
que irradia o pensamento das pessoas letradas, cultas e abastadas da sociedade.
Enfim, aqueles que conduzem com eqüidade a vida do populacho.
Andrômeda
bate levemente na porta e entra para dar bom dia ao patrão e receber as ordens.
Turíbio passa algumas instruções e diz que ela não precisa trabalhar nos
próximos três dias, porque ele irá viajar, para participar de importante
seminário político na Capital, onde encontrará seus amigos de partido. Ela
sorri e agradece: “muito obrigada, senador”.
Os
três dias são sexta-feira e fim de semana. Na noite de sábado, Andrômeda e seu
companheiro, um pedreiro que vive de bicos, entram na mansão e levam o
computador, o aparelho de som e a torradeira elétrica.
O
senador só percebe a falta de um aparelho quatro dias depois de sua volta,
quando resolve ouvir um disco com a música maravilhosa Jesus Alegria dos
Homens, de Bach, interpretada pela Sinfônica de Berlim. Como não sabe usar
computador e compra torrada pronta, nem deu pela falta dos demais
eletrodomésticos roubados pela dupla.
Pergunta
para a empregada o que sucedeu com o aparelho de som. A empregada, que já
pensava não ser questionada sobre o sumiço, simula completo desconhecimento e
surpresa do caso. “Ah, meu Deus! O que será que aconteceu, senador?”. E assim
fica a situação. Para aproveitar o mesmo verbo, digo também que o senador fica
sem ouvir a obra-prima de Bach.
Na
próxima viagem, o senador passa quatro dias fora, para assistir ao casamento do
filho de um governador, bem como aproveitar a casa de campo da família do
anfitrião. Andrômeda e seu companheiro entram novamente na mansão e surrupiam a
televisão pequena, o microondas, um colar de prata, que um dia ornamentou o
pescoço da falecida senhora Cavalcanti, e a impressora, que eles não
conseguiram carregar na primeira noite, para formar dupla com o computador.
Novamente,
o patrão demora para notar o ocorrido. Tem medo de mexer no microondas, possui
quatro televisões em casa e, sem saber informática, não precisa da impressora.
Quase uma semana depois, no dia em que sua mulher faria aniversário, ele abre a
gaveta da cômoda do quarto onde guarda carinhosamente os pertences que ela
usava. É a única data do ano em que o velho senador admira as peças de sua
esposa. Seu coração não resistiria a aberturas constantes da gaveta.
A
empregada, que se conhecesse aquela mania no patrão não furtaria o colar, finge
novamente estar perplexa. “Valha-me Deus. O sangue de Cristo tem poder. O que
está acontecendo nesta casa senador?” E assim, o caso é esquecido e a gaveta,
fechada.
A
próxima viagem é mais longa. Quinze dias no exterior, para visitar o filho e
pegar nos braços o netinho recém-nascido. Tanto tempo disponível aguça o desejo
do casal que planeja golpe mais ousado: o cofre que o senador guarda atrás do
quadro de um famoso pintor impressionista francês. Andrômeda observa o patrão
mexer quase todo dia no cofre.
Marcam
o plano para domingo, porque no sábado o companheiro dela encherá uma laje no
bairro e depois comerá churrasco de carne dura e beberá cachaça, como sempre
ocorre nestes eventos, e dormirá a tarde toda. Na tarde de domingo, já refeito
da farra, ele seleciona as ferramentas que precisa: talhadeira, ponteira,
martelo, marreta e furadeira. Se não conseguir perfurar o cofre para abri-lo,
tirará o dito cujo da parede e o levará para casa. É justamente esta segunda
estratégia que ele usa, porque a broca da furadeira mostra-se incapaz de
penetrar no aço do cofre.
Correm
horas de trabalho para quebrar a parede em volta do cofre. Como a propriedade é
grande, o barulho da marreta na cabeça da talhadeira e da ponteira não é ouvido
por ninguém. Finalmente, o cofre solto. Mas na hora de carregá-lo é um sufoco
por que é muito pesado.
Hábil
ao retirar o cofre da parede, ele deixa espaço para repor o quadro de forma a
tapar o buraco. Além disso, retiram o entulho e limpam muito bem o local. Só
não levam o quadro impressionista por achá-lo feio. “Este pintor é muito ruim.
Não consigo enxergar direito a mulher e as flores. Acho que é porque o infeliz
só tinha uma mão. Tá escrito aqui no cantinho: Manet”, comenta a empregada para
seu companheiro.
Já
em casa, o cofre escorrega das mãos do homem e cai no pé de Andrômeda, que urra
de dor. Com auxílio de um maçarico, abrem e encontram apenas maços de papel com
telefones, nomes de empresas de construção e de pessoas, papéis escritos
“ações”, recibos de depósito e extratos bancários em nome de desconhecidos e
outros documentos em línguas estranhas. Enfim, pouco dinheiro.
O
senador volta dias antes do esperado porque discutiu com o filho que batizou o
neto com nome estrangeiro. Acostumado às faltas da empregada, o patrão espera
dois dias até ligar para ela. Do outro lado da linha, surpresa, ela diz ao
senador que ainda não foi trabalhar porque fraturou o dedão do pé esquerdo.
“Fui conversar com meu marido numa obra e caiu um tijolo no meu pé”, justifica.
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Tudo bem Andrômeda. Espero que você se recupere logo porque viajo novamente
semana que vem.
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