REFLEXÕES
SOBRE O PROVOLONE
O
sistema penitenciário poderia tratar o caso – do deputado
com
provolone na cueca – como centenas de outros
no presídio,
sem exposição pública
Por Fernando
Gabeira
O
Globo – 03/12/2017
Parei
algum tempo para pensar na história do deputado que levava queijo provolone e
biscoitos na cueca. Ele foi condenado a sete dias no isolamento. O queijo
provolone custa R$ 35, o quilo. Na cela de Cabral foram encontrados queijos
tipo Saint Paulin e Chavroux, ambos rondando os R$ 300, o quilo. Nada
aconteceu, exceto a retirada dos alimentos importados.
Na
verdade, acho que ambos os casos são simples infrações das regras do presídio.
O do deputado Celso Jacob acabou resultando numa pena quase que perpétua.
Durante muitos anos, ele será conhecido como o deputado do queijo na cueca. De
um ponto vista social, é um ato inofensivo. Descoberto, revela um ser humano
numa situação patética, dessas que podem acontecer com muitas pessoas ao longo
da vida. São, ao mesmo tempo inofensivas mas destruidoras, se divulgadas.
Minha
conclusão sobre esse caso não é nada popular, a julgar pelas reações das
pessoas com quem comentei meu desconforto. Sinceramente, acho que ele deveria
sofrer algum tipo de punição por infringir a regra e que não deveria exercer o
mandato desde quando foi condenado. No entanto, o sistema penitenciário poderia
tratar o caso como centenas de outros no presídio, sem exposição pública.
Sei
que a luta contra a corrupção é uma grande causa. Exatamente por abraçar
algumas grandes causas, tenho também um pouco de medo delas. Às vezes, fazem
com que gente ignore o outro e sua precária condição humana, no embalo da
defesa de nossas ideias.
A
revolução cultural chinesa foi um impacto para mim. Estava em Lisboa, rumo ao
País de Gales, onde faria um curso de jornalismo. Aquelas imagens de homens
seminus com cartazes pendurados no peito me traziam desconforto. Com o tempo,
conheci melhor o que se passou na China, e cada vez mais a ação daqueles jovens
com o livro vermelho de Mao Tsé-Tung na mão, prendendo e humilhando, pareceu-me
uma maneira doentia de como uma sociedade autoritária pune as pessoas.
Até
num filme sobre julgamento de líderes nazistas, lembro-me de uma cena, de um
dos acusados mais velhos segurando a calça porque estava sem cintos, em que
senti também um desconforto.
Os
tempos passam, e a sociedade renova sua maneira de punir. Além da luta contra a
corrupção, grandes temas como racismo, machismo, homofobia são causas que
mobilizam. Nos Estados Unidos, há um grande movimento de denúncia de assédio
sexual, derrubando um a um os acusados. No Brasil, o eixo do confronto
esquerda-direita acabou se deslocando para essa área de costumes.
Sei
que não posso evitar que toda essa energia emotiva se extravase. Mas sei também
que os tribunais se deslocaram para as redes e que aí são feitos grandes
julgamentos, de um modo geral aceitos de imediato pelas empresas. As opiniões
individuais ganham peso, no entanto trazem também a responsabilidade de se
informar melhor. O que nem sempre acontece.
Gabeira: "É um equívoco pensar que não existem retrocessos" |
Na
rede, não existe um código pré-estabelecido, como na lei, ponderando crime e
castigo. Ela não sentencia ninguém à perda da liberdade, ou qualquer tipo de
multa. Ela trata da imagem e, às vezes, decreta o fim de uma carreira pública.
E,
nesses casos, a distinção entre esquerda e direita é inócua. Recentemente,
surgiu uma campanha afirmando que Caetano Veloso era pedófilo, porque fez amor
com uma garota de 14 anos que se tornou sua mulher e mãe dos seus filhos.
O
caso mais doloroso foi a saída de William Waack de seu posto de trabalho. Ele
disse uma frase condenável. Mas existe ponderação entre a pena e a frase? Eu o
conheci na Alemanha, éramos correspondentes, ele para o “Estadão”, eu para a
“Folha”. Convivemos na época, estivemos juntos quando os sérvios invadiam a
Croácia, no início dos grandes conflitos na região. Sempre o achei um
excepcional jornalista. E nós precisamos dele no Brasil, com sua experiência e
conhecimento do mundo.
Sou
um dos responsáveis pela valorização desses temas no Brasil. Influência dos
anos de Europa. Também de lá, creio, muitas ideias se transportaram para as
universidades americanas. Respeitadas as diferenças nacionais, é um mesmo
movimento por direitos civis aqui e nos Estados Unidos. A experiência americana
é um dos temas que me preocupam. Trump ganhou as eleições. É um equívoco pensar
que não existem retrocessos. Como evitá-los nesse contexto tão apaixonado?
Nesse
domingo de manhã, a única pista que me ocorre é esta: o conhecimento do outro,
do que não concorda com suas ideias liberais. Entender o apelo nostálgico a um
passado mais ordeiro, a ansiedade com as transformações muita rápidas, o medo
de aniquilamento de seu universo cultural, da dissolução da família.
Nada
evitará que o debate seja intenso. Mas talvez possa ter um nível de respeito e
senso de justiça que permitam em certos momentos, a todos, ultrapassarem sua
luta identitária para a condição de brasileiro num país arruinado.
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