sábado, 2 de dezembro de 2017

CHÁ DAS CINCO: PAULO MENDES CAMPOS




DECLARAÇÃO DE MALES

Ilmo. Sr. Diretor do Imposto de Renda.

Antes de tudo devo declarar que já estou, parceladamente, à venda.

Não sou rico nem pobre, como o Brasil, que também precisa de boa parte do meu dinheirinho.

Pago imposto de renda na fonte e no pelourinho.

Marchei em colégio interno durante seis anos, mas nunca cheguei ao fim de nada, a não ser dos meus enganos.

Fui caixeiro. Fui redator. Fui bibliotecário.

Fui roteirista e vilão de cinema. Fui pegador de operário.

Já estive, sem diagnóstico, bem doente.

Fui acabando confuso e autocomplacente.

Deixei o futebol por causa do joelho.

Viver foi virando dever e entrei aos poucos no vermelho.

No Rio, que eu amava, o saldo devedor já há algum tempo que supera o saldo do meu amor.

Não posso beber tanto quanto mereço, pela fadiga do fígado e a contusão do preço.

Sou órfão de mãe excelente.

Outras doces amigas morreram de repente.

Não sei cantar. Não sei dançar.

A morte há de me dar o que fazer até chegar.

Uma vez quis viver em Paris até o fim, mas não sei grego nem latim.

Acho que devia ter estudado anatomia patológica ou pelo menos anatomia filológica.

Escrevo aos trancos e sem querer e há contudo orgulhos humilhantes no meu ser.

Será do avesso dos meus traços que faço o meu retrato?

Sou um insensato a buscar o concreto no abstrato.

Minha cosmovisão é míope, baça, impura, mas nada odiei, a não ser a injustiça e a impostura.

Não bebi os vinhos crespos que desejara, não me deitei sobre os sossegos verdes que acalentara.

Sou um narciso malcontente da minha imagem e jamais deixei de saber que vou de torna-viagem.

Não acredito nos relógios... the pule cast of throught... sou o que não sou (all that I am I am not).

Podia ter sido talvez um bom corredor de distância: correr até morrer era a euforia da minha infância.

O medo do inferno torceu as raízes gregas do meu psiquismo e só vi que as mãos prolongam a cabeça quando me perdera no egotismo.

Não creio contudo em myself.

Nem creio mais que possa revelar-me em other self.

Não soube buscar (em que céu?) o peso leve dos anjos e da divina medida.

Sou o próprio síndico de minha massa falida.

Não amei com suficiência o espaço e a cor.

Comi muita terra antes de abrir-me à flor.

Gosto dos peixes da Noruega, do caviar russo, das uvas de outra terra; meus amores pela minha são legião, mas vivem em guerra.

Fatigante é o ofício para quem oscila entre ferir e remir.


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A onça montou em mim sem dizer aonde queria ir.

A burocracia e o barulho do mercado me exasperam num instante.

Decerto sou crucificado por ter amado mal meu semelhante.

Algum deus em mim persiste, mas não soube decidir entre a lua que vemos e a lua que existe.

Lobisomem, sou arrogante às sextas-feiras, menos quando é lua cheia.

Persistirá talvez também, ao rumor da tormenta, algum canto da sereia.

Deixei de subir ao que me faz falta, mas não por virtude: meu ouvido é fino e dói à menor mudança de altitude.

Não sei muito dos modernos e tenho receios da caverna de Platão: vivo num mundo de mentiras captadas pela minha televisão.

Jamais compreendi os estatutos da mente.

O mundo não é divertido, afortunadamente.

E mesmo o desengano talvez seja um engano.



(Texto extraído do livro "O amor acaba", Civilização Brasileira - Rio de Janeiro, 1999, pág. 259, organização de Flávio Pinheiro.)

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