ILUSTRAÇÃO: FREEPIK |
O INFERNINHO E O GERVÁSIO
O
cara que me contou esta história não conhece o Gervásio, nem se lembra quem lhe
contou. Eu também não conheço o Gervásio nem quem teria contado a história ao
cara que me contou, portanto, conto para vocês, mas logo vou explicando que não
estou inventando nada.
Deu-se
que o Gervásio tinha uma esposa desses ditas "amélias", embora gorda
e com bastante saúde. Porém, Mme. Gervásio não era de sair de casa, nem de
muitas badalações. Um cineminha de vez em quando e ela ficava satisfeita.
Mas
deu-se também que o Gervásio fez 25 anos de casado e baixou-lhe um remorso meio
chato. Afinal, nunca passeava, a coitada, e, diante do remoer de consciência,
resolveu dar uma de bonzinho e, ao chegar em casa, naquele fim de tarde,
anunciou:
-
Mulher, mete um vestido melhorzinho que a gente vai jantar fora!
A
mulher nem acreditou, mas pegou a promessa pelo rabo e foi se empetecar. Vestiu
aquele do casamento da sobrinha e se mandou com o Gervásio para Copacabana. O
jantar - prometia o Gervásio - seria da maior bacanidade.
Em
chegando ao bairro que o Conselheiro Acácio chamaria de "floresta de
cimento armado", começou o problema da escolha. O táxi rodava pelo asfalto
e o Gervásio ia lembrando: vamos ao Nino's? Ao Bife de Ouro? Ao Chauteau? Ao
Antonio's? Chalet Suisse? Le Bistrô?
A
mulher - talvez por timidez - ia recusando um por um. Até que passaram em
frente a um inferninho desses onde o diabo não entra para não ficar com
complexo de inferioridade. A mulher olhou o letreiro e disse:
-
Vamos jantar aqui.
-
Aqui??? - estranhou Gervásio. - Mas isto é um inferninho!
-
Não importa - disse a mulher. - Eu sempre tive curiosidade de ver como é um
negócio desses por dentro.
SÉRGIO PORTO (FOTO: ARQUIVO GOOGLE) |
O
Gervásio ainda escabriu um pouquinho, dizendo que aquilo não era digno dela,
mas a mulher ponderou que ele a deixara escolher e, por isso, era ali mesmo que
queria jantar. Vocês compreendem, né? Mulher-família tem a maior curiosidade
para saber como é que as outras se viram.
Saíram
do táxi e, já na entrada, o porteiro do inferninho saiu-se com "Boa-noite,
Dr. Gervásio" marotíssimo. Felizmente a mulher não ouviu. O pior foi lá
dentro, o maitre d'hotel abriu-se no maior sorriso e perguntou:
-
Dr. Gervásio, a mesa de sempre? - e foi logo se encaminhando para a mesa de
pista.
Gervásio
enfiou o macuco no embornal e aguentou as pontas, ainda crédulo na inocência da
mulher. Deu uma olhada para ela, assim como quem não quer nada, e não percebeu
maiores complicações. Mas a insistência dos serviçais de inferninho é
comovedora. Já estava o garçom ali ao pé do casal, perguntando:
-
A senhorita deseja o quê? - e, para o Gervásio: - Para o senhor o uísque de
sempre, não, Dr. Gervásio?
A
mulher abriu a boca pela primeira vez, para dizer:
-
O Gervásio hoje não vai beber. Só vai jantar.
-
Perfeito - concordou o garçom. - Neste caso, o seu franguinho desossado, não é
mesmo?
O
Gervásio nem reagiu. Limitou-se a balançar a cabeça, num aceno afirmativo. E,
depois, foi uma dureza engolir aquele frango que parecia feito de palha e
matéria plástica. O ambiente foi ficando muito mais para urubu do que para
colibri, principalmente depois que o pianista veio à mesa e perguntou se o Dr.
Gervásio não queria dançar com sua dama "aquele samba reboladinho."
Daí
para o fim, a única atitude daquele marido que fazia 25 anos de casado e
comemorava o evento foi pagar a contar e sair de fininho. Na saída, o porteiro
meteu outro "Boa-noite, Dr. Gervásio", e abriu a porta do primeiro
táxi estacionado em frente.
Foi
a dupla entrar na viatura e o motorista, numa solicitude de quem está
acostumado a gorjetas gordas, querer saber:
-
Para o hotel da Barra, doutor?
Aí
ela engrossou de vez:
- Seu moleque, seu vagabundo! Então é por isso que você se "esforça" tanto, fazendo extras, não é mesmo? Responde, palhaço!
- Seu moleque, seu vagabundo! Então é por isso que você se "esforça" tanto, fazendo extras, não é mesmo? Responde, palhaço!
O
Gervásio quis tomar uma atitude digna, mas o motorista encostou o carro, que
ainda não tinha andado cem metros, e lascou:
-
Dr. Gervásio, não faça cerimônia: o senhor querendo eu dou umas bolachas nessa
vagabunda, que ela se aquieta logo.
***
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