segunda-feira, 17 de agosto de 2015

FALA, OTÁVIO

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COLAR DE PÉROLAS

(Por Otávio Nunes) O negro Benedito cavalgava de volta pela estrada, feliz como o passarinho que leva no bico um inseto para os filhotes no ninho. Tinha ido à cidade, depois de anos, levar encomenda de seu patrão ao intendente da comarca. A cidade estava diferente e movimentada: brancos, negros e índios andavam pela rua, como se fossem iguais.

Ao ver um pé de jabuticaba, a poucos metros da estrada, Benedito interrompeu o campeio, apeou do cavalo e foi se fartar das frutinhas saborosas que abundavam em todos os setembros. E, naquela primavera de 1866, não era diferente. Comeu até sentir a boca “amarrada” e encheu o embornal para levar as pretinhas para seus filhos na senzala.

Ao adentrar novamente na estrada, puxando o cavalo pelo focinho, pisou num objeto duro. Pegou a coisa, tirou o barro, limpou com a camisa e vislumbrou um colar cheio de bolinhas quase brancas. Pôs no bolso para dar a Conceição, sua companheira. “Mulher gosta dessas coisas”, pensou.

Sua companheira estava orgulhosa pelo homem que tinha. Apesar dos anos e dos cabelos brancos como cabeça de alho, Benedito era um negro de estirpe e trabalhava de sol a sol, sem reclamar. Seu pai viera de Angola, de uma tribo guerreira que matou muitos brancos antes de ser aprisionada. O velho, que nem nome brasileiro tinha, sobreviveu num navio por vários meses, comendo batata crua e bebendo água salobra. Na palma da mão, sementes de feijão andu, que ele semeou na fazenda logo que começou a trabalhar como escravo. Benedito nasceu dois anos depois.
 
Bendito entrou na fazenda como um general numa cidade conquistada, cabeça altiva. Dirigiu-se, então, ao escritório do patrão a fim de entregar a carta do intendente. Teve de esperar, pois o fazendeiro atendia um visitante especial, o futuro genro. Sem entender as palavras, Benedito escutou parte da conversa.

-- Meu futuro sogro, acredite, o trem da República está chegando ao Brasil e um de seus vagões trará a libertação dos escravos.

-- Rapaz, você foi à capital para estudar as leis, não modificá-las. Também fui jovem e sonhei. Hoje, sou realista. Quando você desposar minha filha, Ana Rita, juntará as terras do seu pai e as minhas. Pense nisso. Precisará do trabalho dos negros. Por enquanto você é um apenas um idealista, mas vai acordar do sonho.

-- Sou sonhador, sim. E sinto honra em sê-lo. Nos Estados Unidos da América, mister Abrahan Lincoln libertou os escravos, a ferro e fogo. Guerreou com os sulistas conservadores e os derrotou. Pagou com a própria vida, mas garantiu a unidade da federação e a liberdade dos negros. O futuro é inevitável, meu sogro.

Despediu-se e saiu. Minutos depois, Benedito entrou e entregou a carta ao patrão.

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No dia seguinte, o comentário das mucamas na casa-grande era um só: o colar de Conceição. Foram tantas as conversas que chegaram ao ouvido de Ana Rita. Era o seu colar que adornava o pescoço de Conceição. Havia notado a falta da jóia fazia três dias, logo que tinha voltado da cidade onde fora mostrar o belo presente de casamento a suas amigas. Apolônio o comprara de um joalheiro francês, no Rio de Janeiro, para Rita usar no dia do casamento.

Benedito e Conceição foram acusados pelo roubo do colar. A história contada pelo velho escravo não convenceu o fazendeiro, sua filha ou Apolônio. Nada adiantou falar da estrada, da jabuticaba, do colar no barro. O castigo foi duro e exemplar. Benedito e sua mulher foram executados em frente à senzala, na frente de centenas de escravos daquela e de outras fazendas. Apolônio achou justo e apoiou o castigo, no que foi elogiado pelo sogro.

Uma semana depois, os noivos se casaram na igreja da cidade em grande celebração. No pescoço de Rita, o reluzente colar de pérolas, tão alvo que parecia nunca ter se hospedado na pele escura de Conceição ou no barro da estrada.

Enquanto arrumava suas malas para a viagem de núpcias à Europa, inadvertidamente o jovem idealista olhou para a parede de seu escritório e viu o quadro de um homem cortando lenha, escrito embaixo Abrahan Lincoln.

OTÁVIO NUNES É JORNALISTA



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