segunda-feira, 22 de junho de 2015

FALA, OTÁVIO

Otávio Nunes é jornalista


COCEIRA NA TESTA

(Por Otávio Nunes) Sinto você cada vez mais distante, indiferente, apressada. Evita-me a todo momento. Não me chama mais de benhê, querido, fofo, meu gordinho e outras formas carinhosas pelas quais me tratava nos primeiros anos de nosso casamento. Fugidia a todo momento, escorrega de meus carinhos até mesmo na hora de a gente dormir.

Diz que se encontra assoberbada de trabalho e chega cansada em casa. No entanto, seu serviço ainda é o mesmo de quando nos casamos. Nem ao menos foi promovida. Não entendo porque tanta dedicação ao escritório como nos últimos meses. Nunca vi você fazer tanta hora extra. Pelo menos uma vez por semana, entra em casa depois das 10 da noite.

Ao voltar tarde do trabalho, extenuada pelas horas de lida, em vez de suada, ainda está perfumada. Esse capricho de mulher, que em outros momentos me deixaria feliz, causa-me surpresa, por que seu corpo exala o aroma de um sabonete que não usamos em casa. E seu cabelo molhado mesmo sem chuva? Talvez seja o suor de tanto trabalho.

Outro fato que me intriga é a mudança repentina de suas roupas. Cada dia a vejo mais elegante, trajando novos vestidos e saias, em substituição às antigas calças e conjuntinhos. As roupas recentes moldam melhor seu corpo esguio e deixam à mostra suas pernas lisas e torneadas. Será que tudo isso é por mim?

Por essas e outras, alterno instantes de alegria com extremos de melancolia em relação a nós dois. Oh, Capitu da minha vida, penso que suas mudanças de atitude são para me despertar ou para me depreciar.

E quanto a mim? Será que mudei negativamente a seus olhos e não percebi? Acredito que continuo o mesmo. Ou melhor, acho até que aperfeiçoei minha mesmice, meu cotidiano, minhas manias e a forma burocrática e didática de pensar e agir. Talvez seja isso. Sou mais previsível que dízima periódica. Você, ao contrário, sempre buscou novidades.

Confesso, constrangido, que você até sacrificou seus ímpetos por mim. E eu, egoísta, talvez, fazia de conta que não notava. Apreciava incentivava e me aproveitava de sua submissão.

O que mais dói agora, porém, não é exatamente uma dor. Sim, uma coceira incessante na minha testa e a mania idiota de me abaixar para passar pela porta.


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