O GOLEIRO
|
Otávio Nunes é jornalista |
(Por Otávio Nunes) O
fogo começou no térreo do pequeno prédio e aos poucos se estendeu até o
terceiro e último andar. As pessoas que estavam dentro começaram a sair até que
em certa ordem, na medida do possível. A última delas foi a babá que tomava
conta do bebê da família que morava no terceiro andar. Quando chegou embaixo,
ela percebeu que tinha esquecido o garoto dormindo no berço. Um berreiro só.
Mas ninguém deixou que a moça voltasse para o meio das chamas.
Logo
depois apareceu o carro do corpo de bombeiros, com apenas um homem, o mesmo que
dirigia. Ele ativou a escada, subiu e chegou à janela do terceiro andar. Assim
que entrou, caiu no chão, dentro do apartamento e quebrou o ombro. Mesmo assim
pegou o bebê com o braço bom e foi à janela avisar que não conseguiria descer a
escada carregando o menino. Entretanto, não havia ninguém, dotado de coragem
para escalar a escada e ajudar o bravo herói com um braço inutilizado.
Um
jornalista que acompanhava o caso da calçada teve a maravilhosa ideia, caso não
muito comum entre estes profissionais, de chamar o Pereba para salvar o bebê.
Antigo morador das imediações, Pereba foi um dos maiores goleiros de seu tempo.
Disputou três eliminatórias para a Copa do Mundo e participou de duas como
titular da seleção.
Seu
apelido vinha do machucado que ele tinha desde moleque na região glútea,
fronteiriça à coxa direita. Nenhum médico, ungüento ou benzedeira fora jamais
capaz de curar aquela ferida, que ele, abnegado, ainda suportava.
Mesmo
assim, tornara-se um portento embaixo do gol. Durante sua carreira de quase
vinte anos de futebol, pegara mais de uma centena de pênaltis, contando somente
aqueles ocorridos com a bola rolando, metade com a camisa da seleção e o
restante com a do único time que defendera.
Sua
fama o transformara numa lenda viva dos gramados. Atacantes, candidatos a
artilheiros nos campeonatos, não gostavam de jogar contra o time de Pereba,
pois temiam perder tempo e se cansar à toa.
O
único centroavante que costumava balançar as redes de Pereba era o Broto, nome
que recebeu por seus dotes físicos. Os comentaristas de futebol, que naquela
época ainda eram poucos e inteligentes, não conseguiam entender porque Broto
fazia tantos gols em Pereba, muito mais que os outros atacantes. Alguns anos
mais tarde, quando ambos os dois penduraram suas chuteiras, foram morar juntos,
em frente ao prédio que, agora, ardia em chamas.
Pereba
chegou ao incêndio trajando camisa da seleção, calção do seu time e luvas
vermelhas. Posicionou-se embaixo da janela e soltou seu famoso brado, que em
sua época assustava seus zagueiros, “deixa comigo, pode jogar o moleque que eu
pego”.
O
bombeiro, que suava sem saber se era por causa do fogo ou do seu ombro
fraturado, jogou o menino janela abaixo. Pereba voou, fez uma ponte
sensacional, daquelas que ligam as margens de um rio largo, segurou o bebê e
caiu mansamente na calçada de modo a não machucar a “bola”.
Levantou-se
com a criança na mão, sorrindo-lhe. Olhou para a frente e viu o público
aplaudir sua extraordinária defesa. Então, Pereba coçou levemente sua ferida
eterna e imaginou que aquelas pessoas fossem jogadores no campo. Uma delas, de
camisa preta, devia ser o juiz, pois quando Pereba jogava os árbitros usavam
esta cor.
Ergueu
a cabeça e viu que as pessoas esperavam um gesto dele. Jogou o neném para cima,
um pouco além de sua cabeça, esperou cair e chutou para frente. “Esta é pro
ponta-direita.”