Ilustração: Istock |
O VALOR DA
FOFOCA
Criar
faz parte da natureza humana. Uns inventam
sobre
a própria vida, outros sobre a vida alheia
Por
Walcyr Carrasco
Época
Digital – 03/10/2017
Dos aspectos negativos da fofoca, todos
sabemos. Em Os Miseráveis, Victor
Hugo conta a história de Fantine, que se torna prostituta. Quem só viu o filme
ou só assistiu ao musical não sabe muito bem como ela vai para as ruas. O livro
conta: fofoca! Fantine é operária. Mas tem uma filha, sendo solteira, em época
de moral rígida. Paga uma família para cuidar da menina, Cosette. Mas não sabe
ler. Para enviar os pagamentos e pedir notícias, usa os trabalhos de um homem,
que escreve e envia o dinheiro. As amigas desconfiam. Especulam. O homem não
conta, mas uma consegue ver o endereço numa carta. E se dá ao trabalho de ir
até o local onde vive Cosette. Volta com a história completa e conta às amigas.
A história chega à direção da fábrica e Fantine é demitida por ser mãe
solteira. Vende os dentes, os cabelos, torna-se prostituta, morre no hospital.
Jean Valjean, que se esconde da polícia, era o dono da fábrica. Culpa-se pela
insensibilidade, busca Cosette e a cria. Mas a questão é que a pobre Fantine
teve de vender os dentes e se prostituir devido à avidez da fofoca. Hoje, em
tempos menos rígidos, a intimidade de uma pessoa, confidenciada entre lágrimas,
pode virar piada no próximo jantar de amigos. Ou seja: longe de mim defender a
fofoca em si. Mas ela tem seu valor, psicológico e criativo.
Simples. A fofoca é uma forma de criar.
Sempre digo que as pessoas têm tanta
necessidade de ficção na vida como do ar que respiram. Por isso precisam ler
romances, assistir a filmes, novelas. Até mesmo conferir revistas sobre
celebridades, uma forma de exercitar a imaginação, já que a vida real é muito
mais árdua do que aparece nas reportagens. Criar também faz parte da natureza
humana. Alguns se contentam botando posts no Instagram, inventando uma vida que
não têm, com a taça de vinho emprestada de alguém, num hotel onde não se
hospedaram. Outras preferem criar sobre a vida alheia. Aquela mulher que conta
à outra sobre uma terceira, colega de escritório.
– Sabe que ela está saindo com um rapaz 20
anos mais jovem? E sustenta!
Pode ser verdade. Ou ela apenas viu a moça
com o sobrinho, saindo do trabalho. O resto, inventou. Nem todo mundo é
escritor, mas todo mundo pode criar ficção. Eu mesmo aprendi muito com a
fofoca. Morava em um prédio onde vivia uma mulher já madura. De dia, recebia
um, que a sustentava, dava carro, conforto material. De noite, recebia outro,
que amava. Era a fofoca do prédio.
“Uma fofoca,
como todo ato de criação,
tira a
máscara do criador”
Acontece que era feia. Garanto, feia de
verdade. Os dois senhores, pavorosos. Aliás, o que ela amava, um velho bem mais
feio que o outro, o rico. Eu, que tinha certo preconceito estético, aprendi que
beleza não é o mais importante. Havia amor, dinheiro e paixão naquela história
de pessoas maduras. A fofoca me fez entender mais da vida. Em outra época,
soube que o filho da vizinha não era filho, mas neto. Filho da moça que
considerava irmã, mãe solteira. Toda a vila onde morava sabia, menos o menino.
Isso me fez entender mais sobre os pais, que são capazes de acolher, dar
solidariedade num momento difícil. Suponho que o garoto deve ter levado um
susto quando soube. Mas é outra história.
Minha mãe, quando eu era criança, tinha um
bazar. Pequeno, típico de interior, em Marília. Era o centro de informações
sobre a vida alheia do bairro. Todas as mulheres passavam, comentavam. Eu
tentava ouvir. Mamãe me punha para fora quando a história era mais pesada. Isso
me ajudou a desenvolver um certo talento. Quando fiz faculdade de jornalismo, e
mais tarde trabalhei no ramo, era ótimo com as perguntas ao entrevistar.
Destemido. Fiz sucesso com colunas, jornalismo comportamental. Isso me ajuda
até hoje. Quando vou construir uma história, falo com pessoas, converso.
Extraio segredos. Conto por meio dos personagens. Vejam que ligação bonita
saber da vida alheia tem com o ato de criar.
O que é uma grande biografia, a não ser a
vida de alguém? Uma fofoca autenticada, impressa e aplaudida pela crítica?
Há um porém: a fofoca, mesmo real, passa
pelo crivo de quem conta. Pelo meu, pelo seu, pelo nosso olhar. É a velha
história – alguém me oferece meio copo de suco de laranja e posso dizer.
– Adorei, ganhei meio copo de suco refrescante.
– Odiei, imagine, me dar só meio copo? Era
resto!
Quando ouvir uma fofoca, abra as orelhas. O
que alguém diz sobre o outro revela mais sobre quem fala do que sobre o alvo em
questão. Uma fofoca, como todo ato de criação, tira a máscara do criador.
***
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