ARACY BALABANIAN |
SE EU FOSSE EU
De Clarice Lispector
Quando
eu não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-se inútil,
pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que
lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela
frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e
começo a pensar, diria melhor, sentir.
E
não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria?
Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos
acabou de ser locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li
biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam
inteiramente de vida.
Acho
que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque
até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.
Metade
das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho por exemplo, que
por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo
que é meu e confiaria o futuro ao futuro.
"Se
eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a
entrada nova no desconhecido.
No
entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da
festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos
enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor aquela que aprendemos a não
sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e
legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo
adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que
se tem diante do que é grande demais.
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