NO REINO DA ÁGUA FRIA
Meus
caros amigos, o caso eu conto como o caso foi. Como um menino da praia azul do
Pina, na zona sul da cidade do Recife, foi parar em uma rua bucólica do bairro
de Água Fria, na zona norte da cidade?
Antes
de mais nada, porém, dedico essas mal traçadas linhas ao escritor Urariano
Mota, que nasceu, cresceu, multiplicou-se e vive até hoje no bairro, cuja
grande virtude é ser vizinho das Repúblicas Independentes do Arruda.
Mas
tudo começou com a minha avó materna, dona Carmelita, que um dia resolveu
comprar uma casa na Rua Alegre, à direita de quem vem, logo após o Mercado de
Água Fria, descendo uma pequena e bucólica ladeira calçada por paralelepípedos.
Lembro que numa casa de esquina, logo ao lado, havia um pé de sapoti que nos
enchia as noites com um perfume doce e agradável.
Na
casa onde fomos morar, havia um grande quintal onde dona Carmelita plantou
diversos coqueiros. A nossa obrigação – minha, dos meus irmãos e primos – era
urinar nessa plantação para fazê-los vingar. Não sei, porém, se provocado pelo
excesso de urina ou pelo solo argiloso e úmido, os coqueiros terminaram por
minguar e morrer. No Pina, via o meu pai plantá-los no terreno arenoso e
adubá-los com salitre do Chile, que comprava na Casa Leão. Sempre dava certo.
Mas os coqueiros de dona Carmelita não vingaram, para tristeza de todos nós,
crianças e adultos.
Também
havia uma cadela da raça pastor alemão, chamada Pepita. Criada solta e cercada
de crianças desde pequena, era dócil como um vira-latas. Um belo dia, porém,
Pepita amanheceu triste e sem querer se alimentar. Foi definhando, dia a dia.
Terminou por morrer, deitada junto de uma lavanderia que havia no quintal,
perto da porta da cozinha. Fizemos o seu enterro num cantinho do muro, aos
fundos do terreno. Ali, ela descansou em paz.
Lembro
também que nas semanas que antecediam os dias de carnaval, pela rua Alegre (sem
trocadilhos!) sempre passava um clube com a orquestra tocando frevos animados.
Durante anos supus que se tratava da Troça Carnavalesca Mista Batutas de Água
Fria, até descobrir que as troças, diferentemente dos blocos, só saem durante o
dia. Até hoje, não sei que bloco era aquele que incendiava a noite da rua onde
a minha avó morava.
CLÓVIS CAMPÊLO |
Assim
como no Pina, em Água Fria, durante determinadas noites podia-se ouvir os
batuques dos terreiros de macumba. Não sei se hoje ainda existem. Os que haviam
no Pina, porém, foram dizimados pelo progresso que o transformou em um bairro
quase sem identidade cultural e sem as manifestações populares que o
diferenciavam.
Lembro
ainda que em determinadas épocas do ano, o Mercado de Água Fria enchia-se de
abacaxis, com as frutas formando pequenas montanhas. Eu, que durante algum
tempo da minha vida fui criado com vó, acompanhava sempre dona Carmelita ao
mercado e ganhava o direito de escolher os abacaxis pequenos, mas maduros, para
comer com o feijão ela preparava, repleto de bucho de boi e tripa de porco.
Para mim, naquele tempo, não havia pecado nem abaixo e nem acima do equador.
Um
belo dia, dona Carmelita resolveu vender aquela casa e se mudar para o bairro
da Boa Vista, no centro de Recife. Assim, Água Fria foi se distanciando até
tornar-se uma pálida imagem no álbum de fotografias, repleta de lembranças
foras da moldura.
Faz
tempo que não vou em Água Fria, muito embora sistematicamente esteja sempre no
Arruda, olhando o Santinha jogar. Talvez agora que encontro um amigo daquele
bairro, ofereça-se a ocasião adequada para isso. Talvez agora, o menino da zona
sul possa reencontrar o menino da zona norte.
Recife,
abril 2015
Parabéns pela belíssima crônica, Clóvis Campêlo! Adoro esse seu estilo de escrever, principalmente sobre temas líricos e saudosos! Um abraço.
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