quinta-feira, 16 de abril de 2015

CLÓVIS CAMPÊLO



NO REINO DA ÁGUA FRIA


Meus caros amigos, o caso eu conto como o caso foi. Como um menino da praia azul do Pina, na zona sul da cidade do Recife, foi parar em uma rua bucólica do bairro de Água Fria, na zona norte da cidade?

Antes de mais nada, porém, dedico essas mal traçadas linhas ao escritor Urariano Mota, que nasceu, cresceu, multiplicou-se e vive até hoje no bairro, cuja grande virtude é ser vizinho das Repúblicas Independentes do Arruda.

Mas tudo começou com a minha avó materna, dona Carmelita, que um dia resolveu comprar uma casa na Rua Alegre, à direita de quem vem, logo após o Mercado de Água Fria, descendo uma pequena e bucólica ladeira calçada por paralelepípedos. Lembro que numa casa de esquina, logo ao lado, havia um pé de sapoti que nos enchia as noites com um perfume doce e agradável.

Na casa onde fomos morar, havia um grande quintal onde dona Carmelita plantou diversos coqueiros. A nossa obrigação – minha, dos meus irmãos e primos – era urinar nessa plantação para fazê-los vingar. Não sei, porém, se provocado pelo excesso de urina ou pelo solo argiloso e úmido, os coqueiros terminaram por minguar e morrer. No Pina, via o meu pai plantá-los no terreno arenoso e adubá-los com salitre do Chile, que comprava na Casa Leão. Sempre dava certo. Mas os coqueiros de dona Carmelita não vingaram, para tristeza de todos nós, crianças e adultos.

Também havia uma cadela da raça pastor alemão, chamada Pepita. Criada solta e cercada de crianças desde pequena, era dócil como um vira-latas. Um belo dia, porém, Pepita amanheceu triste e sem querer se alimentar. Foi definhando, dia a dia. Terminou por morrer, deitada junto de uma lavanderia que havia no quintal, perto da porta da cozinha. Fizemos o seu enterro num cantinho do muro, aos fundos do terreno. Ali, ela descansou em paz.

Lembro também que nas semanas que antecediam os dias de carnaval, pela rua Alegre (sem trocadilhos!) sempre passava um clube com a orquestra tocando frevos animados. Durante anos supus que se tratava da Troça Carnavalesca Mista Batutas de Água Fria, até descobrir que as troças, diferentemente dos blocos, só saem durante o dia. Até hoje, não sei que bloco era aquele que incendiava a noite da rua onde a minha avó morava.

CLÓVIS CAMPÊLO

Assim como no Pina, em Água Fria, durante determinadas noites podia-se ouvir os batuques dos terreiros de macumba. Não sei se hoje ainda existem. Os que haviam no Pina, porém, foram dizimados pelo progresso que o transformou em um bairro quase sem identidade cultural e sem as manifestações populares que o diferenciavam.

Lembro ainda que em determinadas épocas do ano, o Mercado de Água Fria enchia-se de abacaxis, com as frutas formando pequenas montanhas. Eu, que durante algum tempo da minha vida fui criado com vó, acompanhava sempre dona Carmelita ao mercado e ganhava o direito de escolher os abacaxis pequenos, mas maduros, para comer com o feijão ela preparava, repleto de bucho de boi e tripa de porco. Para mim, naquele tempo, não havia pecado nem abaixo e nem acima do equador.

Um belo dia, dona Carmelita resolveu vender aquela casa e se mudar para o bairro da Boa Vista, no centro de Recife. Assim, Água Fria foi se distanciando até tornar-se uma pálida imagem no álbum de fotografias, repleta de lembranças foras da moldura.

Faz tempo que não vou em Água Fria, muito embora sistematicamente esteja sempre no Arruda, olhando o Santinha jogar. Talvez agora que encontro um amigo daquele bairro, ofereça-se a ocasião adequada para isso. Talvez agora, o menino da zona sul possa reencontrar o menino da zona norte.

Recife, abril 2015




Um comentário:

  1. Parabéns pela belíssima crônica, Clóvis Campêlo! Adoro esse seu estilo de escrever, principalmente sobre temas líricos e saudosos! Um abraço.

    ResponderExcluir