VAI CATAR COQUINHO!
O brasileiro anda muito raivoso. A causa principal
pode ser a aliança nefasta entre políticos e empresários
Por Deonísio da Silva
14/05/ 2017
O presidente Michel Temer reiterou que “precisamos pacificar o país”
e lamentou “uma certa raivosidade que permeia a consciência nacional”,
lembrando que somos conhecidos por nossa cordialidade.
A palavra é nova, mas, como tantas outras ainda por vir, jazia em
estado virtual ou latente. Raiva e raivoso já eram conhecidas e usadas, mas
raivosidade…
Por ínvios caminhos, o presidente acertou em cheio: o brasileiro
anda muito raivoso. Provavelmente nunca sentiu tanta raiva quanto hoje. E a
causa principal pode ser a aliança nefasta entre políticos e empresários, cujas
trapaças a mídia e o judiciário nunca deixaram tão claras quanto hoje.
A tecnologia deu — ou melhor, vendeu — meios e modos para o povo
inteirar-se do que antes ocorria “no escurinho do cinema”, quando eles
“chupando dropes de anis” ficavam “longe de qualquer problema” e “perto de um
final feliz”, que, aliás, para eles sempre veio. Para o povo, não!
Continuando com Rita Lee e Roberto de Carvalho, “mas de repente o
filme pifou/ e a turma toda logo vaiou/ acenderam as luzes, cruzes!/ que
flagra, que flagra, que flagra!”.
A língua portuguesa falada e escrita no Brasil tem várias frases ou
locuções para expressar a raiva, como abaixo transcritas para deleite dos
nossos leitores. Expliquemos uma, pelo menos, a do título.
VAI CATAR COQUINHO é mais antiga do que parece. Provavelmente nasceu
da ordem maluca de Calígula, o insensato imperador romano, assassinado aos 28
anos de idade, no século I de nossa era.
Comandando o poderoso exército romano na campanha da Britânia, ele,
num daqueles ataques de raiva que tanto o caracterizaram, ordenou que seus
soldados catassem conchinhas na praia.
Conchinha é conchula em
latim. Conchinha numa língua pouco afeita à escrita durante tantos séculos,
vinda do Latim vulgar, mais falado do que escrito, foi substituída por coquinho
na expressão.
Lendária a explicação? Lendário também o registro, pois ao cruel
soberano foram atribuídas tantas coisas que se tornou difícil dizer quais são
verdadeiras, quais são falsas. Mas o certo é que, em momentos de raiva, quando
alguém enche nossa paciência, só nos resta, em vez de prosseguir com argumentos
que a pessoa não quer entender, mandá-la catar coquinho, isto é, fazer algo
inútil, mas, que tem o condão de parar de nos incomodar.
Abaixo, outras expressões em momentos de raiva: perder a esportiva,
mandar pentear macacos, ficar de cara amarrada, subir nas tamancas ou nos
tamancos, sair do sério, perder a linha, erguer uma tromba no nariz, ficar
bicudo, tocar fogo no circo, cansar a beleza, chamar nas esporas, colocar o
dedo na ferida, estrilar, ficar de cabeça quente, dar nos nervos, mandar às
favas, perder as estribeiras, afogar as mágoas, pegar no pé, tornar-se uma
pilha de nervos, ficar com os nervos à flor da pele, ficar puto da vida, ficar
com cara de quem comeu e não gostou, ficar com cara de poucos amigos, ficar com
a moléstia, ferver o sangue nas veias, cuspir ou soltar fogo pelas ventas,
atravessar alguma coisa na garganta, mandar plantar (ou descascar) batatas e
virar o bicho, entre muitas outras.
Só não registro aqui também as obscenas porque estas são um capítulo
à parte, uma vez que recorrer às funções excretoras e sexuais é estratégica
universal nestas horas, em todas as línguas. E, neste particular, o Português é
goleado por línguas como o Alemão, o Francês e o Inglês. Cada uma delas tem
muito mais palavrões do que a nossa.
Deonísio da Silva é professor, escritor e etimologista
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