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O SUOR E A LÁGRIMA
Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele
brilho humano, salgado como lágrima.
Fazia calor no Rio, 40 graus e
qualquer coisa, quase 41. No dia seguinte, os jornais diriam que fora o mais
quente deste verão que inaugura o século e o milênio. Cheguei ao Santos Dumont,
o voo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos. Pelo menos aqui no Rio, são
raros esses engraxates, só existem nos aeroportos e em poucos lugares avulsos.
Sentei-me naquela espécie de cadeira
canônica, de coro de abadia pobre, que também pode parecer o trono de um rei
desolado de um reino desolante.
O engraxate era gordo e estava com
calor — o que me pareceu óbvio. Elogiou meus sapatos, cromo italiano,
fabricante ilustre, os Rosseti. Uso-o pouco, em parte para poupá-lo, em parte
porque quando posso estou sempre de tênis.
Ofereceu-me o jornal que eu já havia
lido e começou seu ofício. Meio careca, o suor encharcou-lhe a testa e a calva.
Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com ele enxugou o
próprio suor, que era abundante.
Com o mesmo pano, executou com
maestria aqueles movimentos rápidos em torno da biqueira, mas a todo instante o
usava para enxugar-se — caso contrário, o suor inundaria o meu cromo italiano.
E foi assim que a testa e a calva do
valente filho do povo ficaram manchadas de graxa e o meu sapato adquiriu um
brilho de espelho à custa do suor alheio. Nunca tive sapatos tão brilhantes,
tão dignamente suados.
Na hora de pagar, alegando não ter
nota menor, deixei-lhe um troco generoso. Ele me olhou espantado, retribuiu a
gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu viesse a precisar nos restos dos
meus dias.
Saí daquela cadeira com um baita
sentimento de culpa. Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por
míseros tostões, fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão. Olhei meus
sapatos e tive vergonha daquele brilho humano, salgado como lágrima.
O texto acima foi publicado no jornal “Folha de São Paulo”, edição
de 19/02/2001, e faz parte do livro “Figuras do Brasil – 80 autores em 80 anos
de Folha”, Publifolhas – São Paulo, 2001, pág. 319, organização de Arthur
Nestrovski.
FONTE: PROJETO RELEITURAS
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